São Paulo, quinta-feira, 09 de maio de 2002

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OTAVIO FRIAS FILHO

Pós-fascismo

Tempos atrás, um líder político que aliasse a condição de sociólogo à de militante homossexual e que fosse, então, assassinado seria um dirigente "progressista", vítima da costumeira violência de direita. Mas o holandês Pim Fortuyn, assassinado segunda-feira, a uma semana das eleições gerais, era o dirigente da extrema direita local.
O ascenso da extrema direita na Europa, que participa do governo em pelo menos dois países (Áustria e Itália), dá apoio ao governo em outros dois (Noruega e Dinamarca) e chegou ao segundo turno na França, parece bem explicado. A unificação européia gera uma reação alérgica, histérica, nos grupos sociais ameaçados por essa arquitetura que repete, em escala concentrada, a globalização capitalista.
Outro fator, menos visível, favoreceu os pós-fascistas. Com o fim das alternativas programáticas, a esquerda e a direita tradicionais, "civilizadas", convergiram para uma espécie de Partido Único que hoje governa o planeta. Nosso próprio presidente, sociólogo heterossexual, comporta-se como entusiasta dessa Internacional Centrista.
Em decorrência, os insatisfeitos tendem a ser deslocados para as duas pontas do espectro político, o que beneficiou o "alternativo" Ralph Nader nos EUA e o agrupamento trotskista na França, cuja presença contribuiu, aliás, para a vitória da direita. A extrema direita voltou a ter voz, embora nada faça crer que possa tornar-se algum dia majoritária.
Mas a extrema direita mudou? Ainda estão presentes as nauseantes características de hábito: o apego irracional a valores ligados ao "sangue" e à "pátria", o culto aos lugares-comuns do passado patriarcal, a fé cega numa liderança autoritária, as atitudes boçais, o medo a tudo que pareça novo, estrangeiro ou apenas diferente.
E, no entanto, neste mundo cada vez mais pragmático, a extrema direita e seus eleitores parecem menos preocupados com o domínio de uma "raça" sobre as demais do que com questões mais concretas como emprego e salário. Também eles têm críticas ao modelo centrista liberal que a esquerda ora condena, ora termina por adotar.
No paradigma liberal, quanto mais liberdade para os fatores de produção, maiores serão a eficiência do conjunto e os benefícios para toda a comunidade. Um liberal coerente deveria querer liberdade não só para o capital mas também para a força de trabalho, que poderia migrar e se empregar de acordo com uma só lei: a da oferta e procura.
Tal programa, se aplicado, levaria o desemprego nos países ricos a níveis catastróficos e derrubaria qualquer governo que o implementasse. Mas a "flexibilização" liberal adotada pelos governos centristas já fez devastação social suficiente para que um quinto dos eleitores, na França, por exemplo, fosse empurrado para a atitude mais regressiva.
Em culturas com tradição ideológica, a ansiedade é capitalizada por fascistas e por trotskistas. Num país como o Brasil, onde idéias felizmente não são levadas tão a sério, nem para o bem nem para o mal, a insatisfação flutua a esmo, ao sabor do aventureiro de cada momento e do escândalo de cada semana, numa campanha até agora nervosa, imprevisível.


Otavio Frias Filho escreve às quintas-feiras nesta coluna.



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