|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
CLAUDIA ANTUNES
Inundação
RIO DE JANEIRO - Ao matar e ferir
moradores do asfalto, ao fechar comércio e colégios, ao perturbar a circulação de carros e ônibus pelas avenidas do Rio, a violência relacionada
ao tráfico ganha status de emergência nacional. É como se transbordasse para todos os lados a guerra suja
que há anos submete um quinto da
população da cidade, os mais de 1
milhão de cariocas que convivem nas
favelas com o varejo de drogas.
Depois do tiro que deixou à morte a
universitária de 19 anos, soubemos
do desaparecimento três dias antes
de dois moradores do morro do Turano, de onde partiu o disparo. Também fomos informados de que quatro
jovens haviam sumido na vizinha favela do Borel. Policiais militares de
um mesmo batalhão são suspeitos de
tê-los sequestrado.
Episódios assim acontecem a toda
hora, bem como as "mortes em confronto com a polícia", que chegaram
em março a uma média de 3,6 por
dia. Os policiais afirmam que as vítimas são ligadas à venda de drogas
-quem haveria de questioná-los,
uma vez que a conivência com o crime é igualmente exigida de políticos
e prestadores de serviço que entram
em áreas conflagradas?
A gravação de uma conversa entre
dois traficantes, feita pela polícia
paulista e divulgada nesta semana,
descreve o funcionamento dessa ponta do tráfico: criminosos pretendem
que a associação de moradores do
morro pressione a polícia a suspender
operações que prejudicam seus negócios; mais adiante, discutem a comissão semanal a ser paga a policiais militares. Os inocentes submergem nessa promiscuidade.
Ninguém, muito menos as autoridades, acredita que seja possível acabar com o tráfico. Exterminar as causas que provocam a violência -o
exército de reserva de mão-de-obra, a
corrupção policial, o livre fluxo de armas- é obra, se ainda exequível, de
longuíssimo prazo. Por isso, reina a
desconfiança de que o restabelecimento da sensação de segurança vá
passar pela liberação informal do varejo de drogas, repondo a guerra suja
em seu leito original. É cínico, mas
ninguém iria reclamar, até a próxima inundação.
Texto Anterior: Brasília - Eliane Cantanhêde: Que coisa, hein? Próximo Texto: José Sarney: Tango e samba na dança da Alca Índice
|