São Paulo, domingo, 09 de maio de 2004

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CARLOS HEITOR CONY

Filhos e livros

RIO DE JANEIRO - Não entendi na hora, e não entendo até hoje, o que ela quis dizer quando pediu que eu "desculpasse qualquer coisa". Na verdade, nem prestei atenção ao que ela disse, muito menos ao que eu disse. A expressão, que parece delicada ("desculpe qualquer coisa"), é quase exclusividade dos simples, das donas-de-casa que recebem visita e pedem desculpa antecipada por qualquer coisa. Caiu de moda nos escalões superiores da sociedade.
No entanto a moça nem era simples como as donas-de-casa do subúrbio nem pertencia ao topo da pirâmide social. Era simplesmente uma pesquisadora, contratada por uma editora espanhola para fazer o perfil de alguns escritores. E ela levou a pesquisa a sério, perguntou o que devia e o que não devia, eu respondi o que podia -e podia pouco.
Uma pergunta ficou no ar, sem resposta. A moça quis saber quantos filhos eu fizera neste mundo, eu respondi com a verdade atestada pelos cartórios de registro civil do meu país: "Três". Ela perguntou se eu tinha certeza, eu ia dizer que sim, absoluta certeza, mas, como me comprometera a dizer a verdade, a tão só verdade, abri uma perspectiva mais ampla, comum a qualquer homem: "Bem, a maternidade é um fato, a paternidade é uma possibilidade, posso ter muitos filhos por aí e posso até não ter tido nenhum".
Para complicar a coisa, depois da pergunta sobre os filhos, ela perguntou sobre os livros, quantos eu já publicara. E, honestamente, respondi que não sabia, minha contabilidade literária é uma bagunça editorial, houve até uma adaptação infanto-juvenil de Júlio Verne que apareceu no mercado assinada somente por mim.
A moça percebeu que eu ficara constrangido com a confissão. Pediu que eu desculpasse qualquer coisa. Desculpei.



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