São Paulo, domingo, 09 de maio de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Rumo à democracia global?

BOUTROS BOUTROS-GHALI

Democratizar a globalização é um dos maiores desafios do século 21. Se não compreendermos a importância e a urgência dessa tarefa, correremos o risco de ver a globalização perverter e distorcer a democracia no nível nacional. Está claro que as democracias, mesmo aquelas que contam com os alicerces mais sólidos, vêm sendo enfraquecidas de maneira marcante em conseqüência da globalização. Enquanto a sociedade internacional consiste em várias comunidades políticas sintonizadas com um sistema de compartimentação entre Estados, a sociedade global descompartimenta o universal.
Na esfera econômica, grandes empresas são globalizadas como efeito combinado do progresso tecnológico, da racionalização dos métodos administrativos e da democratização da produtividade. No âmbito financeiro, o mundo foi globalizado em termos reais em conseqüência da desregulamentação de diversos tipos, do fim dos controles cambiais, da inovação financeira e dos avanços nas telecomunicações. Na esfera da informação, nossas vidas hoje são moldadas pela transmissão universal e instantânea de notícias e dados.
Esse fenômeno gerador de ansiedade que é a globalização intensifica as frustrações, solapa os laços tradicionais de solidariedade e marginaliza países. Essa situação não deixa de conter riscos. Guerras, exclusão, ódio e antagonismos étnicos ou religiosos são elementos inevitavelmente fomentados em um ambiente como esse. E o pensamento irracional e fanático está sempre à espreita de oportunidades para acenar para populações aflitas com soluções falsas.
Assim, temos o dever premente hoje de refletir sobre um projeto de convivência que ofereça bases concretas de esperança aos países e aos homens e mulheres de todo o mundo. Para os países do hemisfério Sul, o fato de não poderem tomar parte na administração da globalização equivale a serem historicamente marginalizados. É nesse contexto que a democratização da globalização assume seu significado pleno. Para ser verdadeiramente significativa, a democracia precisa ser exercida onde estiver o poder -nos níveis local e nacional, é claro, mas também no nível global.
A democracia global envolve mais do que a simples transformação das estruturas da democracia nacional. Ela deve incorporar uma arquitetura nova e específica, que seja adaptada a uma base que não é formada diretamente por cidadãos, mas por Estados, empresas multinacionais, partidos políticos etc. Isso exigirá a criação de novas instituições políticas, além da reforma das organizações internacionais existentes.


Está claro que as democracias vêm sendo enfraquecidas de maneira marcante em conseqüência da globalização
Como, então, podemos contribuir para a democratização da globalização? Tive ocasião de estudar essa questão em detalhes na ""Pauta para a Democratização", que propus à Assembléia Geral da ONU em 16/12/96 e que, desde que deixei a organização, vem sendo em grande medida ignorada. Nossa ação deve ser regida por quatro diretrizes.
Em primeiro lugar, é preciso ampliar o âmbito da democracia dentro do próprio sistema da ONU. Isso exigirá uma reforma do Conselho de Segurança e o fortalecimento do Conselho Econômico e Social. Tenho plena consciência de que, ao dizer isso, estou criando um paradoxo, num momento em que as Nações Unidas passam por uma das crises mais graves de sua história.
Em segundo lugar, é crucial envolver as empresas transnacionais no processo de democratização, para que elas apareçam não como predadoras que aproveitam as brechas da ordem social internacional para promover suas finalidades próprias, e sim como agentes de desenvolvimento democrático.
Em terceiro lugar, precisamos vincular o exercício do poder político e econômico às aspirações de participantes sociais e culturais, das ONGs, dos municípios, universidades, Parlamentos, partidos políticos, grupos religiosos, mídia etc. Isso não será fácil, mas não temos outra opção. Queiram ou não os Estados participantes integrar outros, que não sejam Estados, ao processo decisório e à administração da democracia, estes últimos vão continuar a influir no desenvolvimento do novo sistema internacional. Entretanto o exemplo da Organização Internacional do Trabalho, que foi criada antes da ONU e na qual cada Estado é representado por funcionários, trabalhadores e governos, mostra que as soluções técnicas são possíveis, quer na estrutura da ONU, com a criação de uma segunda Assembléia Geral, quer através da criação de uma nova organização internacional.
Para concluir, se quisermos evitar a perspectiva de a Guerra Fria de ontem transformar-se num confronto cultural, em uma guerra de civilizações alimentada pelos movimentos migratórios internacionais em grande escala e pelo terrorismo internacional, teremos de defender a diversidade cultural e o "plurilingüalismo", que são tão importantes para a democracia planetária quanto é o pluripartidarismo para a democracia nacional. Ademais, são uma das razões de ser da Unesco.
A proposta que apresento pode parecer extremamente futurista, para não dizer utópica. Mas eu gostaria de acreditar -e me obstino em continuar a acreditar- que a paz entre as nações baseada na democratização da globalização é concebível e alcançável.

Boutros Boutros-Ghali, doutor em direito internacional, é diplomata. Foi secretário-geral da ONU de 1992 a 1996. Este artigo, exclusivo para a Folha no Brasil, foi produzido pelo autor com base em seu discurso na sessão de ""Conversações sobre o Século 21", organizada na Unesco em março último.


Tradução de Clara Allain



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