São Paulo, domingo, 09 de maio de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Oposição: um comportamento positivo

BORIS FAUSTO

A transição do governo Fernando Henrique para o de Lula parece um fato distante, embora tenha ocorrido há apenas 16 meses. Mas foram meses marcados por ruidosos episódios, por violências sociais com reflexos na política, por enormes decepções para quem as tinha, em maior ou menor grau. Nem por isso a transição foi um acontecimento circunstancial.
Relembrando, por iniciativa do presidente Fernando Henrique e percepção política do presidente Lula, tivemos uma transição civilizada, como nunca ocorrera na atropelada história republicana. Desde logo, uma incursão comparativa nos ajuda a compreender o alcance do episódio.
A comparação é com a Espanha, um país sem dúvida invejável, que soube combinar, mais do que qualquer outro, a estabilidade do regime democrático e um padrão de vida decente da população com uma espécie de ostensiva "alegria de viver", também tão a nosso gosto, incomum nos países anglo-saxões.
Essa Espanha invejável tem sido para nós uma contínua referência, desde os tempos da transição do regime autoritário para o democrático, a partir de meados da década de 70. Seja porque a transição espanhola foi, como a nossa, uma "transição transada", como se dizia na época, seja porque ela teve um mediador importante -o rei Juan Carlos-, que, entre outros fatores, facilitou o desmantelamento do autoritarismo. Em meio ao longo processo de transição "lenta, gradual e segura", que talvez fosse melhor definida como "lentíssima, gradual e insegura", o exemplo espanhol surgia a cada passo. Muitos de nós sonharam com a existência de uma figura como o rei Juan Carlos, capaz de ser uma referência aglutinante no âmbito de um processo heterogêneo, e houve até quem suspirasse pela entronização no Brasil de uma monarquia modernizada e modernizadora.
Pois agora, no momento em que, depois de 12 anos longe do poder, o PSOE retoma o governo, arrebatando-o das mãos do PP, o exemplo espanhol vale como um caso de transição governamental tempestuosa e que fica mal na comparação, talvez excepcional, com a nossa. Como assinala o jornal "El País", em suas edições de 27/4 e 29/4, bastaram nove dias, desde a saída do poder, para que José María Aznar lançasse um artigo em que censura, em termos duros, a decisão do novo presidente de governo, Rodríguez Zapatero, de retirar as tropas espanholas do Iraque, declarando-se "envergonhado" com essa "irresponsável" decisão. Logo depois, na mesma linha, o ex-ministro do Exterior, Ángel Acebes, dirigiu a seu sucessor, José Antonio Alonso, alguns epítetos edificantes, chamando-o de "miserável", "indecente" e "incompetente", porque este teve a ousadia de falar de "imprevisão política" em relação aos atentados terroristas de 11 de março.


Nossa transição de governo apontou um caminho para o comportamento da oposição
Talvez porque o inesperado da derrota tornou-a especialmente amarga, talvez porque o estilo arrogante dos dirigentes do PP tenha se imposto, o fato é que a transição governamental espanhola abriu rachaduras entre personalidades dos dois maiores partidos da Espanha, imediatamente após as eleições.
Voltemos ao Brasil, partindo dos personagens centrais. Como se sabe, o ex-presidente Fernando Henrique guardou uma espécie de quarentena política, evitando pronunciamentos críticos com relação ao novo governo, até o momento em que a quarentena, em vez de salutar, corria o risco de ser tomada como omissão. Não é demais apontar, nesse sentido, que o sonho do ministro José Dirceu, aconselhando Fernando Henrique a cuidar só dos netos e de sua biblioteca, esfumou-se no ar, como tantos outros sonhos do PT e do governo.
Deixemos, porém, palavras impensadas e lembremos algo mais sério, qual seja, o fato de que nossa transição de governo teve não apenas significado em si mesma, como apontou um caminho para o comportamento da oposição -especificamente o PSDB- nos meses seguintes. É fato público e notório que as trapalhadas do atual governo têm origem no seio do próprio aparelho governamental e no PT, como até mesmo um aturdido presidente tem dito a portas fechadas, ou não tão fechadas.
O PSDB, afora uma ou outra voz mais estridente -é uma questão de temperamento-, tem tido uma atitude de crítica responsável diante dos desacertos do governo e das suspeitas que pesam sobre alguns de seus integrantes. Para ficar em um exemplo recente, foram os governadores do PSDB as principais figuras que conseguiram conter governadores aliados do governo (aliados?) e outros mais, na sua tentativa de quebrar as regras da responsabilidade fiscal, em reunião com o presidente que se anunciava problemática.
Entre outras coisas, o PSDB vem mostrando, na oposição, coerência com suas posições básicas quando no governo, uma virtude rara em nosso mundo político e no de outros países. Vem mostrando ainda que o interesse nacional se sobrepõe a ataques irresponsáveis, os quais foram a marca registrada do PT e aliados nos oito anos de mandato de Fernando Henrique.
É problemático afirmar que esse comportamento vai se traduzir em ganhos eleitorais imediatos. Mas, certamente, representa uma contribuição relevante para nossa maturidade democrática, que, como a transição do passado, é também lenta, gradual e insegura -embora progrida.

Boris Fausto, historiador, é presidente do Conselho Acadêmico do Grupo de Conjuntura Internacional, da USP. É autor de, entre outras obras, "A Revolução de 30" (Companhia das Letras).


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