São Paulo, terça-feira, 09 de maio de 2006

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ROBERTO MANGABEIRA UNGER

Nosso dever para com a Bolívia

A reação da parte endinheirada e cosmopolita da sociedade brasileira contra a nacionalização das instalações de petróleo e de gás na Bolívia revela a miopia, a mesquinharia e o mercantilismo que pervertem a discussão da política exterior no Brasil. O interesse vem travestido do direito, o privado confundido com o público e as vantagens de curto prazo sobrepostas aos objetivos de longo prazo. Tratam-se as relações entre dois países vizinhos -um grande e outro pequeno- a respeito de assunto de peso para ambos, porém muito mais vital para o pequeno do que para o grande, como ocasião só para garantir, ainda que por revide e coação, nossa parte.
Primeiro, os fatos essenciais. A Bolívia, sob governos anteriores, repudiados pelo povo boliviano como entreguistas, contratou para vender ao Brasil gás por menos da metade do preço pelo qual ele comumente se vende no mundo. Sucessivos governos brasileiros preferiram continuar dependendo do gás boliviano a desenvolver a base energética brasileira. Em troca, a Bolívia ganhou gasoduto e comprador fiel. E a Petrobras, sem cuidar de contrapeso ou de seguro contra o risco político, tornou-se um dos maiores investidores naquele país. A luta para controlar recursos naturais extraídos de minas e de poços foi sempre o fio da história da Bolívia e o foco da afirmação nacional dos bolivianos.
O que fazer diante da nacionalização e da revisão forçada dos contratos de fornecimento? À Petrobras, como empresa privada, cabe reivindicar seus direitos por todos os meios legítimos. Seus diretores estão obrigados a fazê-lo. Ao governo brasileiro cabe negociar com o governo boliviano com a magnanimidade dos fortes e dos clarividentes, demonstrando espírito de sacrifício e de solidariedade. E usar o imperativo de assegurar nossa independência energética como mais uma razão para pôr fim à política antidesenvolvimentista que se pratica entre nós.
Dizem que isso é romantismo idealista. Engano. A política exterior é ramo da política, não ramo do comércio. Na política exterior das democracias, realismo e idealismo se comunicam e se reforçam. E nenhum país ascende no mundo, ou sequer enriquece, subordinando interesses estratégicos duradouros a interesses comerciais passageiros. Não tem o Brasil interesse mais importante do que acalentar a integração sul-americana, afastando, para preservá-lo, a sombra de qualquer subimperalismo brasileiro. É assim, só assim, que construiremos o palco vasto e variado indispensável a política alternativa de desenvolvimento, que acumularemos força para negociar com o resto do mundo, que criaremos condições para resistir à imposição da hegemonia dos Estados Unidos na América do Sul e que ganharemos ânimo para ficar de pé.
Não cedo a ninguém no vigor de minha oposição ao rumo tomado pelo governo Lula, inclusive na política exterior. Denuncio, porém, o clamor por reação forte contra a Bolívia. Denuncio-o como movimento que desonra o Brasil e que ataca, ao mesmo tempo, nossos interesses permanentes e nossos ideais básicos. Denuncio-o como infidelidade às tradições e ao futuro de nosso país. Que os ventos soprando sobre as selvas e os cerrados brasileiros tragam ao povo triste e forte do altiplano, desfalcado de tudo, menos de dignidade, a verdadeira voz do Brasil: irmãos, sua libertação é nosso engrandecimento.


Roberto Mangabeira Unger escreve às terças-feiras nessa coluna.
www.law.harvard.edu/unger


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