São Paulo, Domingo, 09 de Maio de 1999
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Duas visões da Europa em jogo


Queremos que a Sérvia se junte a nós, mas não podemos aceitá-la enquanto ela se apegar à Europa do passado


ROBIN COOK

O presidente da Iugoslávia, Slobodan Milosevic, sabe que o tempo favorece a Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte). Sua máquina bélica se enfraquece. Seus tanques já não têm combustível. Metade de seus aviões foi destruída e a outra metade tem medo de decolar. O moral das tropas está em declínio. Pouco admira que metade dos reservistas sérvios convocados tenha decidido não responder ao chamado ou que políticos sérvios estejam começando a falar contra o presidente.
Em contraste, a determinação da Otan é sólida como uma rocha. A recente conferência de cúpula da organização, em Washington, mostrou que não há nem sombra de diferença entre os 19 países aliados. Estamos unidos na opinião de que é preciso ir adiante até que Milosevic ponha fim à limpeza étnica, permita o retorno dos refugiados, retire suas tropas e admita uma força militar internacional em lugar delas. Isto é, até que o presidente iugoslavo cumpra as condições determinadas pela comunidade internacional.
A união demonstrada em Washington foi além da Otan. Os líderes dos sete países vizinhos da Iugoslávia estavam presentes. Eles compartilham nossa repugnância pelo programa de terror de Milosevic e apóiam a ação da Otan contra ele. Muitos desses países receberam grande número de refugiados, devido à limpeza étnica. A Otan deixou claro que os ajudará a enfrentar a situação. A União Européia prometeu bem mais de 200 milhões de euros em assistência. Nós nos manteremos unidos.
Há duas visões opostas para a Europa em disputa, e o presente conflito mostra de forma muito clara as diferenças entre elas. Uma é a Europa que Milosevic está tentando construir, fundada nas mesmas noções de pureza racial e intolerância étnica que devastaram nosso continente meio século atrás. É uma Europa em que a lei é apenas a ferramenta do ditador, direitos podem ser revogados, liberdades podem ser cerceadas. Nela, indivíduos são julgados de acordo com seu grupo étnico, e o governo só beneficia quem governa.
A outra visão é aquela em que se embasam tanto a Otan quanto a União Européia: uma Europa que crê que os indivíduos são todos iguais perante a lei, independentemente das raízes étnicas ou religiosas. Nela, a diversidade é ponto forte, não debilidade; o domínio da lei é primordial; os direitos humanos não são objeto de negociação.
A Europa moderna foi fundada mais de 50 anos atrás, sobre os escombros da Segunda Guerra Mundial. Nós estudamos o que restava de nosso continente. Vimos os campos de extermínio, os corpos empilhados, a massa patética de sobreviventes. E prometemos nunca mais repetir essas atrocidades.
Nas últimas semanas, porém, voltamos a testemunhar deportações em trens, milhares de refugiados morrendo de fome em abrigos esquálidos, centenas de milhares de pessoas expulsas de seus lares e desprovidas de seus documentos por nenhum outro motivo que não sua identidade étnica. O que se fez a eles é um golpe contra o coração da Europa. Não podíamos ignorá-lo.
É a Europa moderna que estamos tentando construir hoje. É por isso que estamos expandindo a União Européia e a Otan está reforçando as parcerias com seus vizinhos. Estamos trabalhando com todos os países europeus para reforçar suas democracias, ampliar suas liberdades políticas e desenvolver suas economias -exceto a Sérvia.
Queremos que a Sérvia se junte a nós na Europa moderna que estamos criando. Mas não podemos aceitá-la enquanto ela se apegar à Europa do passado. Não pode haver espaço em nossa família para países fundados na divisão, na repressão e no genocídio.
O povo sérvio é alimentado com mentiras por seu governo. A população viu sua renda reduzida à metade desde que Milosevic assumiu o poder. Viu suas liberdades cerceadas uma a uma, editores fuzilados, jornais fechados, oposicionistas desaparecidos. Viu todos os seus vizinhos aprofundarem suas relações com a Europa e ditarem o rumo para a integração.
Em última análise, a maior ameaça ao presidente Milosevic é o fato de ele mesmo ser incapaz de esconder a verdade de seu povo para sempre: o que fica entre os sérvios e a Europa moderna é o governo da Sérvia. É por isso que ele perderá. E todas as pessoas da região -não importa a que grupo étnico pertençam- vencerão.


Robin Cook, 53, mestre em literatura inglesa pela Universidade de Edimburgo, é membro da Câmara dos Comuns e ministro das Relações Exteriores do Reino Unido.
Tradução de Paulo Migliacci




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