São Paulo, Domingo, 09 de Maio de 1999
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O gosto amargo do sal


Impregnou-se na consciência da elite essa cultura de que não se deve pagar salário justo a quem trabalha


FREI BETTO

Salário deriva de sal, produto raro para quem, na Antiguidade, não habitava o litoral, mas imprescindível à conservação dos alimentos, sobretudo quando não havia refrigeradores. Trocava-se sal por outros produtos ou com ele se pagava a jornada de trabalho.
Num país, como numa pessoa, o que vem do berço não se arranca com facilidade. Se uma criança é (des)educada gritando com a babá, dificilmente, na idade adulta, tratará com respeito os subalternos. Ora, o Brasil se fez à custa do trabalho escravo. Foram 320 anos de escravatura, a mais duradoura das Américas. Durante mais de três séculos, povos trazidos da África erguiam usinas e engenhos, povoados e igrejas, sem receber salário. Mereciam apenas três pês: pão, pano e pau.
Impregnou-se na consciência da elite nacional essa cultura de que não se deve pagar salário justo a quem trabalha. No Brasil, o novo salário mínimo, ao câmbio de R$ 1,70, equivale a US$ 80, irrisório se comparado ao que ganham trabalhadores paraguaios (US$ 215), argentinos (US$ 336) e de outros países da América Latina. Aqui, salário não difere muito de esmola. Procure-se um imóvel que possa ser alugado pelo valor integral do mínimo! Nem na favela.
Não bastasse essa sonegação oficial do direito trabalhista, o governo ainda onera quem trabalha com o peso dos impostos. E faz aprovar uma lei de previdência que, na prática, é uma sentença de quem torce para que o trabalhador morra antes de se aposentar. Ou um prêmio hipócrita àqueles que sobrevivem, por milagre, à idade-limite de aposentadoria e passam a viver de recursos que os obrigam a amargar, na velhice, a humilhação da pobreza.
Por que o brasileiro trabalha tanto e ganha quase nada? À estrutura social que preserva a distância entre a casa-grande e a senzala -10% da população concentra 47% da renda nacional- somam-se fatores como a ganância de uma elite que jamais sofreu como a européia (duas grandes guerras) nem se educou numa cultura de cidadania capaz de conceber a nação como um fenômeno de inclusão de direitos individuais, como nos Estados Unidos.
O descaso de nossas autoridades para com a questão social -um estorvo para as contas do governo- faz com que a miséria e o aviltamento dos salários se alastrem. Há professoras no Nordeste ganhando menos de R$ 50 por mês! Segundo a PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) de 1997, o Brasil tem cerca de 70 milhões de trabalhadores; aproximadamente 14 milhões ganham até um salário mínimo.
Outros 14 milhões ganham de um a dois mínimos. Somados aos que ganham até três salários mínimos, o contingente é de cerca de 37 milhões de trabalhadores com renda mensal agora inferior a R$ 408. Ou pouco mais de 50 milhões de brasileiros, se acrescentarmos 15 milhões de aposentados que recebem um salário mínimo por mês.
Segundo cálculos do Dieese, o salário mínimo deveria ser hoje de R$ 892,86. Basta dizer que, em março deste ano, o carioca gastou com a cesta básica -sem contar aluguel, transporte, saúde etc.- R$ 96,47. Comparado a fevereiro, um aumento de 3,40%.
Dados do Banco Mundial apontam 36 milhões de brasileiros com renda mensal inferior a US$ 30, o que explica o número assustador de crianças que trocam a infância e a escola pelo trabalho precoce, num esforço para contribuir com a minguada renda familiar. Antes, a mulher trocava o lar por um emprego fora. Agora, são as crianças, muitas vulneráveis a máfias de prostituição e de drogas. Milhares de empregadas domésticas recebem uma ninharia em troca do asseio da casa, da comida saborosa e variada, da arte de jamais quebrar um objeto, da gentileza de atender telefones, da paciência de suportar suspeitas quando uma peça desaparece, da humilhação de lidar com crianças malcriadas que, aos gritos, dão ordens e as obrigam a serviços extras.
Um dos sintomas da submissão do governo Fernando Henrique à ganância das elites é a exclusão do imposto sobre as grandes fortunas do pacote fiscal. Quebra-se a nação; jamais os banqueiros, socorridos regiamente com o dinheiro do contribuinte. Enquanto isso, submete-se a população a intermináveis filas na porta dos hospitais e das escolas ou na procura de empregos, como no caso das 4.000 pessoas que disputaram no Rio, sob violência da PM, umas poucas vagas de lixeiro.
Desde o início de maio, o mínimo vale R$ 136. Se um trabalhador solteiro tomar duas conduções por dia, em São Paulo, gastará no mês R$ 69. Sobram R$ 67. Se alimentar-se, a cada dia, só com um cachorro-quente e um refrigerante, a preço de carrocinha de rua, são R$ 54. Sobram R$ 13 para o aluguel de uma vaga sob o viaduto do Glicério.
Eis um salário com o gosto amargo de sal. O governo demonstra ter horror à idéia de uma nação na qual todos participem condignamente da renda nacional. Se assim não fosse, bastaria adotar o programa de renda mínima proposto pelo senador Eduardo Suplicy. A renda "per capita" brasileira está em torno de US$ 5.500 -ou seja, um tem três galinhas e dois não têm nenhuma. Porque as estatísticas, como o governo, não têm sensibilidade.


Carlos Alberto Libânio Christo (frei Betto), 53, frade dominicano, é escritor e assessor de movimentos pastorais e sociais. É autor do romance "Entre Todos os Homens" (Ática), entre outras obras.



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