São Paulo, domingo, 09 de junho de 2002

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FÁBRICA DE ÓRGÃOS

Até meados dos anos 80, transplantes de órgãos eram tratamentos apenas experimentais. O fenômeno da rejeição, pelo qual o sistema imunológico do receptor combate o órgão enxertado como um corpo invasor, comprometia seriamente a sobrevida do paciente. Com a descoberta de novas drogas imunossupressoras, notadamente a ciclosporina, transplantes de vários órgãos tornaram-se uma alternativa viável de tratamento.
As maiores barreiras à difusão da técnica são a baixa oferta de órgãos e os efeitos colaterais da imunossupressão. A ciclosporina tem ação nefrotóxica e carcinogênica, o que pode a longo prazo inviabilizar o tratamento. Ela também reduz a qualidade de vida do transplantado, que se torna vítima de infecções frequentes.
Se houvesse como criar uma oferta ilimitada de órgãos que não provocassem rejeição, boa parte das doenças campeãs de mortalidade se tornaria coisa do passado. Essa possibilidade, que poucos anos atrás seria considerada fruto da imaginação de autores de ficção científica, existe, ainda que seja técnica extremamente incipiente, sujeita a dificuldades de que ainda nem se suspeita.
A promessa vem da clonagem terapêutica. Células dos primeiros estágios de desenvolvimento do embrião são totalmente indiferenciadas, isto é, têm a capacidade de converter-se em qualquer tipo de tecido. Pesquisadores agora vêm descobrindo formas, ainda muito rudimentares, de criar tecidos de interesse médico.
Em princípio, não seria preciso empregar técnicas de clonagem para obter células indiferenciadas. Elas poderiam vir de qualquer embrião. A clonagem entra para garantir que as células utilizadas sejam desenvolvidas a partir do próprio corpo do paciente, o que eliminaria a rejeição.
Na semana passada, a revista "Nature Biotechnology" publicou estudo de Anthony Atala, da Universidade Harvard, e de Robert Lanza, da empresa Advanced Cell Technology, em que os pesquisadores relatam como, usando a clonagem, foram capazes de criar órgãos semelhantes a pequenos rins em uma vaca.
O experimento funcionou até melhor do que o esperado, porque as células renais desenvolvidas se mostraram funcionais. Produziram urina. Como o material que deu origem aos novos órgãos foi retirado da própria vaca, não houve rejeição.
Apesar de passos promissores como esse, é forte em todo o mundo a pressão de setores conservadores para proibir todos os tipos de clonagem. Esses grupos não diferenciam essa clonagem terapêutica da reprodutiva, isto é, a que teria como objetivo gerar réplicas humanas.
A clonagem reprodutiva é, de fato, no atual estágio da ciência, uma aventura irresponsável que implica graves desvios éticos. Já a clonagem terapêutica é pesquisa legítima. Tem o apoio das mais sérias instituições científicas do planeta. Se o cenário mais otimista se concretizar, a clonagem terapêutica será, também, o mais perto que a humanidade chegou da mítica panacéia, o remédio que cura todos os males.



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