São Paulo, domingo, 09 de junho de 2002

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TENDÊNCIAS/DEBATES

O buraco da fechadura

RUBEM ALVES

Lula, você deve se lembrar de que, numa das eleições passadas, seus adversários tentavam desqualificar sua candidatura por causa de suas origens humildes. Escrevi, então, um artigo, no qual eu comparava a sua condição com a condição de um outro político de origens humildes e que tinha tirado diploma por correspondência: Abraham Lincoln... Digo isso para explicar o que vou dizer: não é coisa de inimigo. É coisa de quem deseja compreender.
Sou psicanalista. Psicanálise é uma perturbação no olhar. Os olhos de psicanálise sofrem de uma cegueira, eles não vêem as fachadas. Fachadas são o lugar da propaganda: esses programas eleitorais que os partidos compram de profissionais especializados, a peso de ouro, tão bonitos, tão comoventes... Você sabe, política não se faz com realidade, política se faz com imagens sedutoras. O povo ama imagens sedutoras.
Mas os olhos de psicanálise não vêem fachadas. Eles vêem bem é através de buracos de fechadura. Buracos de fechadura são buracos bem pequenos, através dos quais vemos os mundos que as fachadas escondem. Acontece que você falou uma coisinha, e essa coisinha foi, para mim, um buraco de fechadura. Pus o meu olho lá, para ver direito. E o que vi me deixou confuso.
Você é homem de partido. Você pensa o pensamento do partido. Você diz o que o partido manda dizer. Aprendi isso a seu respeito por ocasião do plebiscito sobre presidencialismo e parlamentarismo. Você e o Genoíno eram a favor do parlamentarismo. Aí o partido consultou as bases e elas disseram: presidencialismo. Pois, no dia seguinte, você havia se esquecido das suas convicções da véspera e só falava aquilo que o partido havia determinado.
Sei que isso é uma virtude partidária. Mas eu não consigo entender os mecanismos psicológicos que fazem com que um homem deixe de pensar o que pensava porque o partido mandou. Eu compreenderia se você tivesse se calado. Calado, você continuaria a pensar os seus pensamentos, mas, por lealdade ao partido, não diria o que estava pensando. Foi o que fez o Genoíno. Por isso eu o admirei. Na Igreja Católica, isso tem o nome de "silêncio obsequioso".
O Vaticano impôs a pena de silêncio obsequioso ao Leonardo Boff, por falar aquilo que ele pensava. Mas você ultrapassou o silêncio obsequioso, você mudou seus pensamentos e sua fala.


Eu não consigo entender os mecanismos que fazem com que um homem deixe de pensar o que pensava porque o partido mandou


Mudou mesmo? Se mudou, esse seria um fenômeno psicológico a ser estudado. Ou não mudou, mas fez de conta que mudou? Nesse caso, você estaria dizendo algo que não era a sua verdade. O partido proíbe o pensamento divergente? Teremos de "pensar tudo o que seu mestre mandar", chame-se papa ou bases? E a democracia, onde fica?
Você disse. Se disse, é porque é opinião do partido. E tanto é assim que o partido não o desautorizou. Assumo, então, que o que você disse é parte do programa do partido. Segundo os jornais, a um público de pastores evangélicos você declarou ser favorável a que o ensino da Bíblia seja feito nas escolas; esse é o buraco da fechadura... Ao fazer isso, você tocou a menina dos meus olhos, a educação. Fiquei com medo...
Eu não sabia que você era assim apaixonado pela Bíblia, ao ponto de fazê-la parte do programa educacional do seu partido. Você é mesmo assim apaixonado pela Bíblia? Imagino a alegria dos pastores que o ouviam, vendo-se como futuros professores de Bíblia em nossas escolas públicas. Ou sua declaração teve o objetivo de ganhar votos evangélicos? Essa é uma hipótese perversa que me recuso a levar em consideração, pelo simples fato de que ela transgride a posição rigidamente ética que tem sido a marca bonita do PT.
Como você sabe, as esquerdas sempre desconfiaram das religiões e seus clérigos; e isso por duas razões. Primeiro, as relações confortáveis entre as religiões dominantes e o poder. Segundo, pelo efeito alienante das suas doutrinas. Lembra-se de Marx? Fiquei surpreso pensando que sua proposta representa um desvio das posições clássicas dos partidos de esquerda. Mais do que isso, ela representa um retrocesso em relação às conquistas da democracia liberal, de direita, que separou religião e Estado.
E ainda mais, é sabido que tem havido um conflito secular entre os pensamentos religioso e científico. Não podemos nos esquecer de Giordano Bruno, Galileu e Darwin. E eu que imaginava que o programa educacional do PT seria secular e formado pela ciência! O que vi através do buraco da fechadura me provocou grande confusão mental.
É preciso levar em conta que, se a Bíblia vai ser ensinada nas escolas, por uma exigência democrática, também a Torá, o Corão, o Evangelho segundo o espiritismo, o Bhagavad-Gita...
Sua declaração me fez confuso acerca das propostas educacionais do PT. Essa perplexidade não é só minha. Amigos meus do PT também expressaram o mesmo espanto. O que está em jogo é coerência, ética, credibilidade. O que vi pelo buraco da fechadura não combina com o que está escrito na fachada. Por favor, Lula, ajude-me a entender...


Rubem Alves, 68, psicanalista e escritor, é professor emérito da Unicamp, autor de, entre outras obras, "A Escola com que Sempre Sonhei sem Imaginar que Pudesse Existir" (Papirus).



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