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São Paulo, segunda-feira, 09 de junho de 2003

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Águas turvas

RODOLFO KONDER


Se hoje todos falamos em democracia, cabe perguntar: que tipo de democracia se pretende criar?

Nos últimos anos, frequentemente tenho me sentido como um marisco, imprensado entre o mar e a pedra. No caso, espremido entre ondas sucessivas de greves, protestos e depredações, de um lado, e, do outro, um sistema que às vezes lembra um rochedo, fechado e misterioso, áspero e incompreensível. Essa situação exige de mim -e de todos os mariscos imprensados por aí- algumas reflexões.
Estamos mergulhados em águas turvas. O passado se mistura ao presente. Agarra-se a ele, imobilizando-o. É uma luta que se trava diante de nós. Dentro de nós, inclusive. Velhos conceitos e posições ultrapassados escondem, para muita gente, partes essenciais da nova realidade. As mudanças em nível federal são um exemplo.
Lá fora ruíram as barreiras, os muros e as velhas fronteiras ideológicas. No resto do mundo, antigos conceitos se desfizeram como castelos de areia batidos pelos ventos da mudança. Aqui, porém, insiste-se na mofada separação entre esquerda e direita. Há ditadores amigos e justos. E ditadores inimigos e perversos -embora os crimes cometidos por todos eles sejam praticamente iguais.
As inevitáveis resistências à mudança coabitam com o reformismo, dentro do próprio governo. O atraso mais profundo, no entanto, está no autoritarismo que ainda domina amplos segmentos da sociedade brasileira. Está no sindicalismo de confrontação, no grevismo selvagem, no movimento dos sem-terra, no desrespeito aos direitos alheios. Também está nos setores mais toscos do nosso incipiente capitalismo, é verdade. Na busca do lucro fácil e na falta de responsabilidade social de alguns.
Na aldeia global, devemos olhar sempre para fora, levantar a cabeça e ver o que se passa, especialmente nos países por onde o mundo avança. Lá o sindicalismo busca a parceria, a cooperação. Os sindicalistas pregam uma nova ordem, baseada no respeito aos direitos humanos. Trabalham com o mercado e a globalização da economia.
Enquanto isso, aqui, ainda são muitos os que se abraçam ao velho e pouco perspicaz patriotismo. Atacam as multinacionais e o "imperialismo americano" (reanimado, é verdade, pelo presidente George W. Bush), como fazíamos nos anos 50 e 60. Querem proteção contra o capital estrangeiro, visto agora como indispensável até no Leste Europeu. Parecem contaminadas por uma doença tão letal quanto a pneumonia asiática. Uma espécie de ferrugem mental, que nos faz retroceder, mergulhados no ódio e no ressentimento requentados da "luta de classes" e da "ditadura do proletariado".
Estamos todos infectados por muitos anos de autoritarismo, tempos de uma obsessão antidemocrática que nos tornaram quase incapazes de conviver com a controvérsia. Os brasileiros poderiam ter amadurecido mais, durante esse período de sombras, se os donos do poder não os tivessem conduzido pela mão. Tratados como crianças, tornaram-se criaturas dependentes, deseducadas, agressivas e frágeis em sua capacidade de duvidar, questionar, debater.
Se hoje todos falamos em democracia, cabe perguntar: que tipo de democracia se pretende criar? Na busca de um caminho, não podemos permitir que se substitua uma forma de autoritarismo por outra. No esforço necessário para encontrar a direção correta, devemos olhar simultaneamente para fora e para dentro.
Olhar para fora significa, hoje, situar o Brasil num quadro mundial em plena mudança, situar o país no pós-guerra, vê-lo em suas relações com os Estados Unidos de Bush, a nova Europa e a Argentina que sai das urnas. Olhar para dentro não é menos importante. É partir corajosamente para uma auto-análise, ver se estamos de fato empenhados na conquista da liberdade plena para todos, se podemos conviver com a controvérsia, se estamos aptos a respeitar opiniões diferentes das nossas.
Viktor Frankl já nos advertiu, em "Men's Search for Meaning", que é fundamental darmos um sentido à vida. Nesse cenário cinzento de violência e desencontro em que nos movimentamos, construir uma democracia sólida e duradoura pode ser a missão que dará sentido às nossas vidas.


Rodolfo Konder, 64, jornalista e escritor, é diretor cultural da UniFMU. Foi secretário da Cultura do município de São Paulo (gestões Paulo Maluf e Celso Pitta) e presidente da seção brasileira da Anistia Internacional (1989-90).


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