São Paulo, quinta-feira, 09 de junho de 2005

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Nova lei para empresas em crise financeira

MODESTO CARVALHOSA

Quem imagina que a globalização afeta apenas o campo da economia engana-se. A sua abrangência alcança também o mundo das leis, na medida em que instituições internacionais, notadamente o Banco Mundial, levam as nações a padronizarem as normas que regulam a atividade empresarial.


A nova lei que hoje entra em vigor é muito positiva e será ainda mais com sua boa aplicação pelo Poder Judiciário


Assim ocorre com a uniformização dos balanços, com as regras antitruste e, agora, com a recuperação das empresas em crise econômica ou financeira. Mercê de uma legislação moderna adotada em diversos países nos últimos anos, tais empresas passam a contar com instrumentos que permitem sua continuidade, mesmo no caso de falência.
Sob a égide do documento "Principles and guidelines for effective insolvency and creditor rights systems", o Banco Mundial incentivou importantes reformas no direito alemão, em 1999, no português, em 1993, e no espanhol, em 2003, para citar as mais modernas e significativas.
No âmbito desse movimento globalizante, hoje entra em vigor no Brasil a Nova Lei de Falências e Recuperação de Empresas, que, diferentemente da antiga, de 1945, visa propiciar, ao longo dos seus 217 artigos, meios e providências para a manutenção no mercado de companhias em crise.
A lei nš 10.101, de 9 de fevereiro deste ano, personaliza a empresa, apartando-a da figura do seu empresário. O objetivo é, a despeito dos fatores negativos, manter viva a unidade produtiva, permitindo a continuidade dos empregos e o exercício de sua imprescindível função econômico-social na comunidade onde atua. Para tanto, foram criadas as figuras da recuperação judicial, que substitui a antiga concordata, e a extrajudicial, que permite um amplo acordo amigável, embora vinculativo, entre os credores e o devedor em dificuldades.
Na lei que hoje se inaugura, ocorrendo a falência, afasta-se o empresário e procura-se, o mais rapidamente possível, dar continuidade à empresa, pela sua venda a terceiros, ou mediante sua adjudicação pelos próprios credores, ou por sua compra por parte de seus empregados, ou ainda o seu arrendamento. Há uma série de providências nessa nova legislação falimentar que permitem, portanto, que, mesmo ocorrendo a falência, não se percam as unidades produtivas. Essa personificação, na esteira do famoso conceito da empresa em si (unternehmen an sich) do direito alemão, é a razão principal do novo regime legal da falência entre nós.
Da leitura sistemática do novo texto verifica-se, ademais, um acentuado pragmatismo, na medida em que se tende a admitir a recuperação judicial das empresas em dificuldades apenas quando os credores vislumbram a viabilidade do valor presente positivo do fluxo de caixa e a perspectiva futura de rentabilidade. Não havendo esse duplo requisito, a lei induz a uma pronta declaração de falência, quando se vai buscar, pelos mecanismos de rápida arrecadação e antes de qualquer outra providência judicial, a venda dos estabelecimentos operacionais da falida, numa ordem que visa a preservação da integridade dos ativos tangíveis e intangíveis em vez da sua desintegração, como até agora ocorria.
O novo instrumento legal é, portanto, auspicioso se comparado ao antigo, que, na prática, pela sua manipulação, protegia o devedor na concordata. O mesmo ocorria no processo falimentar, cuja delonga provocava o desinteresse dos credores financeiros e comerciais em face da iníqua ordem de preferência dos créditos "trabalhistas" dos próprios administradores da falida e os de natureza tributária.
A nova lei estimula a participação dos credores na recuperação judicial e na falência. São agora criados instrumentos de efetiva intervenção dos interessados, por meio da assembléia geral e do comitê, com poderes para decidir por maioria sobre os créditos das diversas classes, diminuindo, dessa forma, a intervenção do juiz no curso do processo.
Não obstante essas inovações, muitas críticas têm ocorrido, em face das diversas emendas que surgiram a partir de 2000/2001 no projeto original, de 1993, e que privilegiaram não somente os empréstimos como também os contratos bancários, sobretudo no regime de recuperação judicial. As críticas chegaram a tal ponto que se apelidou o novo diploma de "Lei Febraban", para assim dizer que tais emendas fizeram com que ela não mais estivesse voltada à recuperação das empresas em crise, mas à salvação do capital financeiro aí aplicado.
Não é bem assim. Basta lembrar que os créditos bancários na falência apenas têm privilégio até o valor das respectivas garantias e que o saldo cai na vala comum dos quirografários. De qualquer forma, tais privilégios, ainda que relativos, dão às instituições financeiras uma posição dominante na formulação do plano original ou alternativo de recuperação judicial e extrajudicial.
Daí a importância do Poder Judiciário. Com base nos princípios da função social dos contratos e da boa-fé objetiva, introduzidos pelo Código Civil de 2002, haverá sempre a possibilidade de suspensão, pelo juiz, da execução das garantias, se necessária para a recuperação da empresa em crise.
Por tudo isso, conclui-se que, não obstante relativamente privilegiar interesses de bancos, a nova lei que hoje entra em vigor é muito positiva e o será ainda mais com sua boa aplicação pelo Poder Judiciário e com a efetiva atuação dos credores.

Modesto Carvalhosa, advogado empresarial, doutor em direito econômico pela USP, é autor de, entre outros livros, "Direito Econômico" (Revista dos Tribunais). Foi presidente do Tribunal de Ética da OAB-SP (1991-94).


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