São Paulo, segunda-feira, 09 de julho de 2007

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Constituinte e iniciativa popular

PAULO BONAVIDES


A história, nas repúblicas periféricas, é um cemitério de Constituições. O direito constitucional, todavia, é direito que liberta


O PODER constituinte não expira com a promulgação da Constituição. Dissolvido o colégio constituinte, um poder, doravante de segundo grau, nascido daquele, se traslada para outro órgão ou ente: o corpo representativo. Toma ele então forma jurídica e, a partir daí, padece as limitações estatuídas na Constituição.
Funciona desde então apenas como órgão reformador permanente, congregando a capacidade, a competência e a faculdade de introduzir mudanças substanciais no sistema constitucional. Mas o faz sem vulnerar-lhe a essência, sem destruí-lo, sem revogar a lei fundamental que o rege, da qual é o instituto mais nobre, mais poderoso, mais enérgico no exercício da soberania. E deve atuar invariavelmente nos quadros normativos que a Constituição traçou com o fim de preservar a ordem jurídica vigente.
As restrições a que se submete constam taxativamente das cognominadas cláusulas pétreas. Assim se designam as do parágrafo 4º do art. 60 da Constituição Federal, por excluírem da competência do poder reformador a matéria nele contida, que é de todo intangível.
O poder constituinte derivado jamais poderá elaborar uma nova Constituição. Só uma grande revolução trará de volta, com legitimidade, o poder constituinte originário. Os ditadores dos países inseridos na geografia do subdesenvolvimento buscam, porém, legitimidade outorgando cartas constitucionais porque não podem ressuscitar aquele poder.
A história, nas repúblicas periféricas, é um cemitério de Constituições.
O direito constitucional, todavia, é direito que liberta. E o é sobretudo em países sujeitos à agressão liberticida dos que procuram apagar o perfil democrático das instituições, desferindo golpes de Estado e provocando crises de governabilidade.
O parágrafo único do art. 1º da Constituição fez a democracia lograr, em termos principiológicos, grau de normatividade sem precedente na história constitucional do Brasil.
Desde 1988 os princípios alojados na Constituição governam o país com altíssimo teor jurídico, graças à força normativa do princípio da soberania popular. Pode este introduzir nas formas decadentes do modelo representativo institutos como o da iniciativa popular no que toca à propositura constitucional de reformas do sistema. A abertura de uma nova artéria da democracia no art. 60 da Lei Fundamental dar-se-á mediante introdução do item IV aos três itens antecedentes, que conferem exclusividade de emenda constitucional por iniciativa de um terço dos membros da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, do presidente da República e de metade mais uma das Assembléias estaduais. Urge acrescentar a emenda por iniciativa popular.
Passo encorajador nessa direção partiu, de último, da Assembléia Legislativa do Ceará, que ora empreende a reforma da Constituição estadual. Busca o legislador cearense adequá-la, por inteiro, à Constituição Federal, mediante o expurgo de inconstitucionalidades e a adoção de acréscimos atualizadores. E também de inovações mais ousadas, com apoio em cláusulas da Constituição inferidas dos capítulos em que constam princípios expressos ou implícitos, em que os grandes valores humanos da liberdade e da fé republicana compõem a abóbada normativa do sistema constitucional.
As duas Casas parlamentares não entraram ainda fundo nas reformas do regime. Mas o casuísmo de suas emendas já orça em 53, com grave risco à estabilidade do ordenamento.
Nos Estados Unidos, ao longo dos derradeiros 60 anos, não foram além de quatro, conforme lembra Ernesto Bettinelli, constitucionalista italiano.
Um dia, entre nós, haverá mais emendas que artigos na Constituição. Tratada como se fora medida provisória ou decreto-lei, os nossos legisladores fazem da Constituição objeto de cerca de 800 propostas de emenda constitucional ora em tramitação no Congresso.
Isso lembra o pessimismo do publicista romano que via a corrupção da república no excesso de leis. Nós a vemos por igual na freqüência de emendas, que lhe destroem as bases da legitimidade e lhe minam o respeito público. Sem legitimidade, não há democracia, muito menos Estado de Direito. Haverá, sim, cárcere político, presidencialismo de caudilhos, demagogia do carisma, negação da liberdade e privação de valores.

PAULO BONAVIDES , 82, doutor "honoris causa" da Universidade de Lisboa, é professor emérito da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará, presidente emérito do Instituto Brasileiro de Direito Constitucional, diretor da "Revista Latino-Americana de Estudos Constitucionais" e membro do comitê que fundou a Associação Internacional de Direito Constitucional. É autor, entre outras obras, de "História Constitucional do Brasil".

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