São Paulo, sábado, 09 de agosto de 2008

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Você vai assistir à Olimpíada de Pequim?

SIM

A Olimpíada é a vida - melhorada

MOACYR SCLIAR

VOU, SIM , assistir à Olimpíada (pela tevê, naturalmente). Vou torcer por nossos atletas. Vou vibrar e sei que, em alguns momentos, vou me emocionar. Por quê? De onde tiro essa certeza, que é a de milhões de pessoas em todo o mundo?
No meu caso, a resposta está num nome, hoje pouco lembrado: Abebe Bikila. Etíope, ex-pastor de ovelhas e depois militar, foi o primeiro atleta a vencer duas maratonas olímpicas e é considerado por muitos o maior maratonista de todos os tempos.
Bom, vocês dirão, grandes atletas existem, isso não chega a ser novidade. Mas Bikila era diferente. Esse homenzinho pequeno, magro, franzino, nascido em um dos países mais pobres do mundo, assombrou o público na maratona de 1960, em Roma, porque correu pelas ruas da cidade eterna descalço. Isso mesmo, descalço. E, descalço, ele chegou quatro minutos antes do segundo colocado; descalço, declarou que poderia correr mais dez quilômetros sem problemas.
Na maratona seguinte, em Tóquio, ele convalescia de uma cirurgia de apêndice realizada cinco semanas antes. Mas correu, e novamente venceu.
Dessa vez teve de usar tênis por imposição dos juízes. E só não venceu a terceira maratona, na Cidade do México, porque, depois de correr 17 quilômetros, fraturou a perna esquerda e teve de desistir.
Uma outra e irônica tragédia o aguardava. Em 1969, dirigindo o carro que ganhara do governo, teve um acidente que o deixou paralisado do pescoço para baixo. Os pés o consagraram, um automóvel foi a sua nêmese, o instrumento de sua desgraça.
Olimpíadas são eventos mundiais.
Conotações sociais, políticas, ideológicas são inevitáveis; boicotes e até atentados (Munique, 1972: 11 atletas israelenses mortos por terroristas) podem ocorrer. Já em 1936, Hitler tentara transformar a Olimpíada de Berlim num vasto espetáculo de propaganda nazista. Mas algo estragou, ainda que parcialmente, o deleite dos arianos: o fato de o atleta americano Jesse Owens ter ganho quatro medalhas de ouro nas provas de corrida.
Como Abebe Bikila, Jesse Owens era negro; neto de escravos, filho de um humilde trabalhador agrícola.
Bikila e Owens não foram, e não são, casos isolados. Para milhares de jovens, inclusive e principalmente no Brasil, o esporte, e sobretudo o esporte olímpico, é o caminho da auto-afirmação, da restauração da dignidade pessoal. E o instrumento para isso é aquilo que o ser humano possui de mais autêntico: o próprio corpo.
É o corpo que tem de responder ao desafio. Na verdade, o atleta não está só competindo com outros; está competindo consigo próprio. Está pedindo a seu tronco, seus braços, suas pernas, seus músculos, seus nervos que o ajudem a mostrar aos outros o que ele vale. Quando o peito do corredor rompe a fita na chegada da prova, não se trata apenas de uma vitória mensurável em minutos e segundos. Trata-se de libertação. É o momento em que a pessoa se liberta da carga pesada representada por um passado de pobreza, de privações, de humilhação.
Vocês dirão que o esporte não corrige as distorções, não redistribui a renda. Mas corrige distorções emocionais e sociais, representadas pelo preconceito; e redistribui auto-estima. É pouco? Talvez seja, mas é um primeiro passo.
E nós? Nós, os espectadores, sentados em nossas poltronas, diante da tevê? Para nós, a Olimpíada é igualmente importante. Não só porque representa um puxão de orelhas no sedentário ("Puxa vida, está na hora de eu começar a caminhar pelo parque"), coisa que ajuda a saúde pública, mas também porque, de algum modo, participamos no que ocorre nos estádios.
Sabemos que a vida é dura, cheia de problemas. Mas então pensamos no Abebe Bikila correndo de pés descalços sobre as pedras de Roma. Pensamos no que são as solas daqueles pés, enrijecidas por anos de caminhada e corrida sobre pedregulhos, sobre áspera areia, sobre espinhos. São um símbolo de resistência, esses pés. São pés que, transportando gente humilde, levam-nas longe no caminho da esperança, fazem-nas subir ao pódio de onde se pode, ao menos por um momento, divisar novos horizontes.


MOACYR SCLIAR, 71, médico e escritor, é membro da Academia Brasileira de Letras e colunista da Folha. É autor, entre outras obras, de "O Texto, ou: A Vida".

Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br


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