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Chapéu romano
CARLOS HEITOR CONY
RIO DE JANEIRO - Quando JK morreu, em 1976, herdei-lhe o gabinete
que ocupava no edifício Manchete,
um conjunto de salas, arquivos etc.
Mais tarde, grande parte do material
ali guardado foi encaminhado para o
Memorial JK, em Brasília. Ficaram
alguns móveis que ele usara no Palácio do Catete. E eu.
Com o tempo, meus trecos foram
crescendo. Ali fiz a edição e grande
parte do texto final de seus livros de
memórias ("Meu caminho para Brasília"). Nas horas vagas, eu próprio
fazia meus livros, recebia amigos, era
minha segunda casa.
Os trancos da vida arrebentam pessoas físicas e jurídicas. Num desses
trancos, o juiz mandou lacrar a portaria do prédio, formalizando a autofalência solicitada pela empresa. Fiz
o requerimento a S. Exª., pedindo
acesso aos meus objetos pessoais, livros, originais, pôsteres de Mila, correspondência e, como peça mais valiosa e insubstituível, o chapéu romano que usei nos anos de seminário.
Para quem não sabe, chapéu romano é redondo, parece uma miniatura
do planeta Saturno cortado pela metade. Era de uso obrigatório para padres e seminaristas antes do último
Concílio do Vaticano. Nem sei por
que o chapéu me acompanha pela vida afora, sempre o coloco à vista,
diante das mesas em que trabalho. É
uma lembrança e, ao mesmo tempo,
uma advertência.
Com a ajuda da Beth e do Edilson,
esvaziei minhas salas, só deixando
paredes e móveis que não eram meus.
Dei um último olhar para aquele
mundo que se fechava para sempre.
Lembrei a alegria de JK quando lhe
mostrei o primeiro exemplar de suas
memórias. Levou o livro ao nariz e
disse que adorava o cheiro da tinta
de impressão. Mandou para Geisel
esse primeiro livro.
Lembrei outras coisas. A moça que
entrou sem se anunciar, deu o recado
e foi embora. Eu a olhei com atenção,
para ver se ela atravessava as paredes, como um fantasma.
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