São Paulo, quinta-feira, 09 de setembro de 2004

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ALCINO LEITE NETO

O sonho entre quatro paredes

Às vésperas dos três anos do 11 de Setembro (no próximo sábado), o espectador tem a oportunidade de comparar dois filmes americanos interessantíssimos: "A Vila", de M. Night Shyamalan, e "O Terminal", de Steven Spielberg, que estréia amanhã.
Diferentes na trama e na forma, eles têm contudo um ponto em comum que vale a pena observar: são narrativas sobre o confinamento, sobre a impossibilidade ou a dificuldade de sair de um espaço determinado. Nos dois estão em questão as chances de universalização do sonho americano.
Em "A Vila", uma fábula extraordinária e cinematograficamente requintada, os habitantes de uma comunidade agrária não podem ultrapassar os limites de uma floresta porque imaginam que ali vivam monstros ferozes.
Em "O Terminal", um imigrante de um fictício país do Leste Europeu, ao desembarcar em Nova York é impedido de entrar nos EUA e não pode tampouco retornar ao seu país. Ele se instala então no aeroporto, neste "lugar nenhum" que é a ala internacional, onde viverá por vários meses.
Todos sabem que o cinema clássico de Hollywood foi, ao longo do século 20, um dos principais agentes de difusão e atualização da utopia americana no imaginário dos EUA e do mundo. Sem deixar de ser entretenimento, a produção cinematográfica ajudou a instruir e a inspirar confiança a respeito do modo de vida americano nas massas desagregadas por uma industrialização sem precedentes e, além disso, formada no país por milhões de imigrantes da Europa e do Oriente.
Nos filmes, o sonho americano e sua promessa de felicidade inspiravam o movimento físico de avanço e conquista e o movimento espiritual de auto-superação. Nos espaços abertos da América, a história se manifestava concretamente como construção da liberdade pregada pelos pais-fundadores. O movimento perpétuo para fora e para a frente era o espelho, na narrativa, da própria dinâmica da democracia americana e da confiança no futuro feliz. "As nações democráticas amam o movimento por ele mesmo", escreveu Tocqueville em "A Democracia na América" (1835-40).
No "western", cumpria aos protagonistas avançar no território inóspito e conquistá-lo para torná-lo habitável segundo os princípios da utopia americana. Nos filmes urbanos, as cidades impunham agruras e provas aos recém-chegados, mas eram também o espaço onde cada um encontraria afinal o seu lugar ao sol.
Nem "A Vila" nem "O Terminal" contêm mais tal confiança na universalização do sonho americano, dissociando espaço nacional, construção da história e liberdade. Em ambos, a história virou ameaça -e o campo da ação livre é limitado, crítico. Os personagens de "A Vila" se trancafiaram numa aldeia para fugir do mundo exterior -para escapar da história, de fato. Vivem como colonos do século 19 americano, mas numa espécie de redoma do tempo, interessados não na conquista e na difusão de seus ideais, mas na autopreservação.
O imigrante de "O Terminal", por sua vez, impedido de entrar nos EUA, terá de fazer sua experiência dos valores americanos no espaço geopoliticamente neutro de um aeroporto. Spielberg, hoje o moralista maior da democracia americana no cinema, faz o filme clássico às avessas: é o imigrante que recorda e impõe o sonho americano aos EUA, não o contrário.
Impressiona que dois "blockbusters" sejam portadores de reflexão tão aguda, na forma de parábolas, sobre o futuro difícil da utopia americana.


Alcino Leite Neto é editor de Domingo.


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