São Paulo, quinta-feira, 09 de setembro de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Mitos e desafios na política externa

JOSÉ MAURICIO BUSTANI

A sociedade brasileira, cada vez mais, discute política externa: as negociações da OMC (Organização Mundial do Comércio), a prioridade da África, o jogo da seleção no Haiti ou a recusa a apoiar a invasão do Iraque são vividos e debatidos nas famílias e rodas de amigos. O momento é próprio para refletir sobre certos mitos a respeito das transformações do sistema internacional e do papel dos países em desenvolvimento. Se empregarmos uma visão distorcida por interesses que não são os brasileiros, o resultado será a incapacidade de compreender o porquê de algumas escolhas e a prevalência, em nossos esquemas mentais, do anedótico sobre o essencial.
Um primeiro mito sustenta que o crescimento dos diferenciais de poder entre as nações tornaria o sistema mais hierárquico e mesmo imperial. Seria por meio do exercício da hegemonia que se superariam os desafios atuais. Caberia aos países em desenvolvimento adaptar-se a uma realidade que não podem modificar. No entanto a própria realidade revela a insustentabilidade do mito. A desigualdade de poder não tem evitado a erupção de ameaças novas ou persistentes à paz e de catástrofes humanitárias e ambientais. São negadas, assim, as promessas, implícitas no sistema, de progresso e prosperidade e surgem fatores de perturbação e violência.


O estreitamento de relações com o mundo em desenvolvimento não se dá em detrimento dos países desenvolvidos


A necessidade de as nações atuarem, de maneira harmônica, para a superação dos problemas mais graves requer a recuperação e o fortalecimento do multilateralismo como elemento ordenador das relações internacionais. Tal processo exige a renovação do compromisso de todos com as regras do direito internacional e com a integridade das instituições multilaterais, como as Nações Unidas e a OMC.
A transição entre a afirmação do poder bruto e dos particularismos, que é a marca de um passado anárquico, e a via superior da negociação e do direito, que é o fundamento do futuro, só pode ocorrer no contexto de um espaço internacional mais democrático e sensível aos interesses dos países em desenvolvimento. A construção de tal espaço prosperará, por sua vez, com a negação da segunda parte do mito, que recomenda timidez no cenário internacional e aceitação das supostas realidades de poder.
É possível uma atuação corajosa e ao mesmo tempo pragmática. A determinação de afirmar "a presença soberana e criativa do Brasil no mundo", anunciada pelo presidente Lula, tem levado à busca de novas parcerias, amparadas em interesses e percepções comuns.
Essa estratégia revela-se, em primeiro lugar, na prioridade conferida à América do Sul, por meio de um ambicioso projeto de integração, com epicentro no Mercosul e voltado para a criação de uma comunidade sul-americana de nações. A partir do nosso continente, já estamos ampliando a rede de diálogo para a América Central e o Caribe, como se comprova com a participação na operação de paz da ONU no Haiti e na visita do presidente Lula à República Dominicana.
Em segundo lugar, estamos formando alianças com grandes países em desenvolvimento, com a criação, em 2003, do Ibas (foro que une Índia, Brasil e África do Sul); a visita, em maio de 2004, do presidente Lula à China; e a intensidade inédita de nosso diálogo político com a Rússia.
Em terceiro lugar, a política externa passou a refletir a natureza especial de nossos vínculos com a África, continente para o qual já houve três visitas presidenciais no atual governo. E temos aproveitado oportunidades de cooperação, de diálogo e de negócios com os países árabes, reforçando a presença brasileira em região considerada estratégica por todas as potências do mundo.
Em quarto lugar, o estreitamento de relações com o mundo em desenvolvimento não se dá em detrimento dos países desenvolvidos. Como embaixador no Reino Unido, tenho constatado a relevância do diálogo político e a dimensão das oportunidades que esses países oferecem para nosso projeto de desenvolvimento, em matéria de acesso a mercados, investimentos e cooperação tecnológica.
Essas quatro linhas de atuação reforçam-se mutuamente e lançam as bases para um relacionamento menos assimétrico com as grandes potências. Exemplo disso é o sucesso do G20, foro que congrega países em desenvolvimento na OMC e que já permitiu redirecionar a negociação da Rodada de Doha em sentido mais compatível com os interesses brasileiros e dos demais países em desenvolvimento.
No campo político, o tema central é a reforma das Nações Unidas, particularmente do Conselho de Segurança, com a inclusão de membros permanentes oriundos do mundo em desenvolvimento. Neste momento, em que se observa a ampliação das atribuições do conselho para o combate ao terrorismo e às armas de destruição em massa, é indispensável que sua composição se torne mais próxima da configuração atual do sistema internacional, em que os países em desenvolvimento já não podem ser ignorados.
A política externa brasileira, beneficiando-se do empenho do presidente Lula e da execução magistral do chanceler Celso Amorim, combina a superação de mitos negativos com o enfrentamento decidido de desafios. Atende, assim, aos interesses de nossa sociedade e constitui instrumento efetivo para o desenvolvimento nacional.

José Mauricio Bustani, 59, diplomata, é o embaixador do Brasil em Londres. Foi diretor-geral da Opaq, Organização para a Proibição de Armas Químicas (1997-2002).


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