São Paulo, sábado, 09 de setembro de 2006

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

TENDÊNCIAS/DEBATES

O voto nulo é útil para a democracia?

SIM

Votos fulos

CARLOS FERNANDO GALVÃO

A PALAVRA fulo que dizer "zangado", e irritar-se é uma forma natural de se posicionar ante um fato. Não designa, necessariamente, alienação. Até pelo contrário, pode ser uma forma de protesto e de ação eficaz, ao menos para quem opta por ela, desde que seja fruto de uma reflexão mesclada ao estado de revolta que levou a pessoa a indignar-se.
Não existe uma "não-comunicação", pois não falar nada ou nada fazer é, per se, um ato comunicativo. O silêncio (o voto nulo não deixa de ser uma espécie de "silêncio eleitoral") tem sua eloqüência, como demonstra o belo quadro "O Grito", de Münch, ou como atesta a linda música "O som do silêncio", de Simon e Garfunkel.
Assim, não posso deixar de estranhar o argumento -muito difundido, inclusive pelo TSE- de que o voto nulo é um voto inconseqüente. O mesmo TSE nos faz saber que o eleitor não tem o poder de anular uma eleição, ainda que o percentual de votos nulos chegue a 80% -ou mais. Então, anular o voto por quê?
Quem anula o voto está se posicionando com muita clareza diante do que vê, ouve e lê todos os dias na imprensa. Onde está a inconseqüência desse ato consciente?
Então a pessoa, ora chamada de "cidadã", em épocas eleitorais, ora denominada "contribuinte", entre as eleições, não tem o direito de se expressar pela zanga e revolta, pelo voto nulo? Cadê a democracia desse Estado de Direito que coage muitos a votar, a prestar serviço militar?
Esses são direitos inalienáveis da cidadania e, portanto, não poderiam ser deveres impostos por leis que nem podemos contestar legalmente.
O voto, além de facultativo, pode, sim, virar objeto não apenas de protesto mas também de uma ação efetiva, pois sua nulidade é, no mais das vezes, para muito além do pouco interesse do eleitor, uma tomada consciente de posição. Quer dizer, é um ato político dos mais legítimos. Os poderes instituídos, públicos e privados, é que têm de provar, no discurso e na prática, que não há a necessidade de votar nulo. Não podemos continuar permitindo que a vontade popular seja tolhida, a começar por sua desqualificação.
Fala-se, por exemplo, que anular o voto não o invalida, mas invalida o próprio eleitor. Ora, quando vamos parar de pensar e de falar pelos outros e deixar que cada um decida o valor que quer se dar? Também se argumenta que eleição é a escolha do menos pior. Então, estamos reduzidos a escolher o ruim para não termos o péssimo? Não há outro caminho? É esse o legado obtuso que vamos deixar para nossos filhos?
Creio que eleição não pode mais ser o acordo de cúpulas políticas e econômicas que tem sido. Temos, cidadãos, de abrir espaço "a fórceps" no mundo político para institucionalizarmos a tão falada -mas muito pouco praticada- democracia participativa, sem prescindir da representativa.
De quanto tempo as pessoas que já têm anos de vida pública e os partidos com décadas de estrada precisam para nos convencer de que vão fazer aquilo que propõem a cada eleição e não cumprem, como "discutir com a sociedade"? Quando ouço isso, penso sempre em arranjos de cúpula, ainda que envolva uma pequena fatia de trabalhadores organizados.
O filósofo francês Jean-Paul Sartre dizia que menos importa o que fazem ao homem; mais importa o que ele faz do que fizeram com ele. E outro pensador importante, o escritor Oscar Wilde, dizia que dois homens podem olhar pela mesma janela: um vê lama, e o outro, estrelas.
Nossas crises sociais não serão superadas pela ação da cúpula que nos tem dominado desde que Cabral por aqui aportou, mas pela ação de todos nós, cidadãos e pessoas de bem, independentemente da ideologia. Convido todos a começar um novo tempo-espaço brasileiro, a partir de um novo olhar que podemos lançar sobre o que está acontecendo: não vendo só a lama que nos atola os pés; vendo também as estrelas que podemos alcançar se nos esforçarmos, solidariamente, para tanto.
Difícil, sem dúvida, mas não impossível. Acreditemos mais em nosso potencial. Em tempo: como acredito na política participativa, mas também na representativa, não vou anular meu voto, mas respeito os que considerem o voto nulo como opção e como instrumento de luta democrática.


CARLOS FERNANDO GALVÃO, 36, geógrafo, mestre em ciência da informação (UFRJ), doutorando em ciências sociais (Uerj), é presidente da ONG Cidade Viva (RJ).

Texto Anterior: TENDÊNCIAS/DEBATES
André Franco Montoro Filho: Uma proposta sem propósito

Próximo Texto: Painel do Leitor
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.