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Arrastão e tucanismo
VINICIUS TORRES FREIRE
Parece que o arrastão de praia está
para voltar à moda, assim como o paletó de dois botões e o cotelê. Teve arrastão no feriado da zona sul do Rio.
Essas carreiras de pilhagem em grupo
estrearam na pré-temporada do verão
de 92. Na mesma época, explodiam as
chacinas paulistas, ou ao menos corria
sangue bastante para que nós, jornalistas, as notássemos. As galeras do
funk e do crack deram assim sua contribuição à sociologia da barbárie da
modernização brasileira.
Criados no confinamento da miséria, na tradição de desesperança que se
tornou niilismo cínico, jovens sem outra perspectiva que a das paredes da
cortelha em que viviam ensinaram a
quem quisesse saber que o país produzira gente sem apreço pela vida, de
outros ou a sua, de resto já mutilada.
Os arrastões arrefeceram com um
pouco mais de polícia na praia e com o
Exército na rua. Esfriaram assim que a
pior crise social em três décadas, a de
Collor, foi substituída pela bolha de
crescimento de Pedro Malan, a do
Real. As galeras deram lugar às balas
perdidas. Mas o morro e o subúrbio
ainda fervem, assim como a periferia
paulistana, no vácuo de indústrias e
idéias da modernização tucano-collorida. As chacinas prosperam.
O tucanismo não quer saber. Esse
arrastão intelectual não produziu apenas um governo que poderia ter sido
de um conservadorismo útil. De carteirinha ou não, o tucanismo é um estado de espírito que floresce. É um
economicismo "poseur", venha a pose de economistas ou não. São "realistas sérios", candidatos a "um nome
honrado entre as execráveis gerações
que virão", cortesia e maldição de Samuel Beckett lançada a bem-postos e
pensantes num mundo insuportável.
A impostura de sua serenidade evidencia-se nas estatísticas falseadas
que brandem, sobranceiros, para dizer que o Brasil progride sempre, que
os "indicadores" melhoram, que se
consome mais, que a vida é assim
mesmo, embora este país pobre seja o
mais desigual do planeta.
Furtam das suas tabelas de melhorias a contribuição de antibióticos,
água clorada e chips coreanos baratos
ao aumento da expectativa de vida e
de consumo de TVs. Surrupiam dados que até o tucanismo global elabora no BID e no Banco Mundial, que
mostram como países mais pobres e
desiguais andaram a passo mais rápido que o Brasil nos últimos 30 anos e
tornaram-se mais civilizados (vide
"Pathways to Growth - Comparing
East Asia and Latin America", editado
por Nancy Birdsall, edição do BID).
Dizem que a receita para combater a
pobreza é "crescer, crescer e crescer".
O Brasil deve crescer, ainda que pianíssimo, se a caturrice liberalóide tiver
aprendido algo sobre déficit externo
(chance de crescer que a esquerda
apalermada desde o Real não nota, como desdenhou a inflação, sempre a
esperar o são Sebastião da catástrofe).
Mas sobrariam migalhas para a escumalha da terra, como sempre. "O
mundo mudou", dizem, "com a queda do Muro de Berlim", esse clichê
mefítico. Isto é, não há alternativa, nada de arrombar a porta da senzala: talvez sobre algum para a feijoada da paz
social, pois "eles pedem tão pouco", já
dizia um grão-senhor num romance
divertido de Paulo Francis.
Vinicius Torres Freire é editor de Opinião da Folha. Hoje, excepcionalmente, não é publicado o artigo de Otavio Frias Filho, que escreve às quintas-feiras
nesta coluna.
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