São Paulo, Quinta-feira, 09 de Setembro de 1999
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Arrastão e tucanismo

VINICIUS TORRES FREIRE

Parece que o arrastão de praia está para voltar à moda, assim como o paletó de dois botões e o cotelê. Teve arrastão no feriado da zona sul do Rio. Essas carreiras de pilhagem em grupo estrearam na pré-temporada do verão de 92. Na mesma época, explodiam as chacinas paulistas, ou ao menos corria sangue bastante para que nós, jornalistas, as notássemos. As galeras do funk e do crack deram assim sua contribuição à sociologia da barbárie da modernização brasileira.
Criados no confinamento da miséria, na tradição de desesperança que se tornou niilismo cínico, jovens sem outra perspectiva que a das paredes da cortelha em que viviam ensinaram a quem quisesse saber que o país produzira gente sem apreço pela vida, de outros ou a sua, de resto já mutilada.
Os arrastões arrefeceram com um pouco mais de polícia na praia e com o Exército na rua. Esfriaram assim que a pior crise social em três décadas, a de Collor, foi substituída pela bolha de crescimento de Pedro Malan, a do Real. As galeras deram lugar às balas perdidas. Mas o morro e o subúrbio ainda fervem, assim como a periferia paulistana, no vácuo de indústrias e idéias da modernização tucano-collorida. As chacinas prosperam.
O tucanismo não quer saber. Esse arrastão intelectual não produziu apenas um governo que poderia ter sido de um conservadorismo útil. De carteirinha ou não, o tucanismo é um estado de espírito que floresce. É um economicismo "poseur", venha a pose de economistas ou não. São "realistas sérios", candidatos a "um nome honrado entre as execráveis gerações que virão", cortesia e maldição de Samuel Beckett lançada a bem-postos e pensantes num mundo insuportável.
A impostura de sua serenidade evidencia-se nas estatísticas falseadas que brandem, sobranceiros, para dizer que o Brasil progride sempre, que os "indicadores" melhoram, que se consome mais, que a vida é assim mesmo, embora este país pobre seja o mais desigual do planeta.
Furtam das suas tabelas de melhorias a contribuição de antibióticos, água clorada e chips coreanos baratos ao aumento da expectativa de vida e de consumo de TVs. Surrupiam dados que até o tucanismo global elabora no BID e no Banco Mundial, que mostram como países mais pobres e desiguais andaram a passo mais rápido que o Brasil nos últimos 30 anos e tornaram-se mais civilizados (vide "Pathways to Growth - Comparing East Asia and Latin America", editado por Nancy Birdsall, edição do BID).
Dizem que a receita para combater a pobreza é "crescer, crescer e crescer". O Brasil deve crescer, ainda que pianíssimo, se a caturrice liberalóide tiver aprendido algo sobre déficit externo (chance de crescer que a esquerda apalermada desde o Real não nota, como desdenhou a inflação, sempre a esperar o são Sebastião da catástrofe). Mas sobrariam migalhas para a escumalha da terra, como sempre. "O mundo mudou", dizem, "com a queda do Muro de Berlim", esse clichê mefítico. Isto é, não há alternativa, nada de arrombar a porta da senzala: talvez sobre algum para a feijoada da paz social, pois "eles pedem tão pouco", já dizia um grão-senhor num romance divertido de Paulo Francis.


Vinicius Torres Freire é editor de Opinião da Folha. Hoje, excepcionalmente, não é publicado o artigo de Otavio Frias Filho, que escreve às quintas-feiras nesta coluna.



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