São Paulo, Quinta-feira, 09 de Setembro de 1999
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Armas e autoridade


Depois de pouco mais de dois anos de vigência do Sinarm, presenciamos um debate estéril


ROMEU TUMA

Do total de crimes praticados nos últimos cinco anos, com grave ameaça ou violência contra a pessoa, como agressão, estupro, roubo, sequestro, homicídio, latrocínio etc., quantos foram cometidos com uso de arma de fogo comprada regularmente e registrada no órgão policial competente? E com uso de arma de fogo não registrada na polícia? E, ainda, com uso de arma de fogo registrada na polícia, mas subtraída de quem a registrou?
Creio que, sem respostas insuspeitas a esses quesitos, a polêmica nacional em torno do destino das armas de fogo legalmente registradas continuará impregnada de passionalidade e desprovida de embasamento técnico. Por isso, dirigi requerimento de informações ao ministro da Justiça, em busca de tais respostas, depois de esperar inutilmente que o debate trouxesse elementos determinantes de uma reavaliação da lei nº 9.437, de 20/2/1997, cujo projeto relatei no Senado. Essa lei criou o Sistema Nacional de Armas (Sinarm) e transformou em crime o ato de "possuir, deter, portar, fabricar, adquirir, vender, alugar, expor à venda ou fornecer, receber, ter em depósito, transportar, ceder, ainda que gratuitamente, emprestar, remeter, empregar, manter sob guarda e ocultar arma de fogo, de uso permitido, sem a autorização e em desacordo com determinação legal ou regulamentar". Também está proibida a fabricação, a venda, a comercialização e a importação de brinquedos, réplicas e simulacros de armas de fogo que com estas se possam confundir. Além disso, cresceram as exigências para compra e registro de arma, dificultando sobremaneira a licença de porte. As penas para os transgressores variam de um ano a mais de seis anos de reclusão, sem prejuízo de outras sanções cabíveis (caso do contrabando, por exemplo). Estão reservadas igualmente para quem, por falta de cautela, permite a menor de 18 anos ou deficiente mental apoderar-se de arma de fogo. Estendem-se a quem empregue arma de brinquedo ou simulacro de arma capaz de aterrorizar outrem no cometimento de crimes. E são aumentadas da metade caso o criminoso seja servidor público.
Entretanto, depois de pouco mais de dois anos de vigência da lei do Sinarm, presenciamos um debate estéril, por vezes demagógico, enquanto não se implementa nem sequer um dos aspectos fundamentais da lei em vigor, ou seja, o recadastramento obrigatório de todas as armas de fogo que já estavam legalmente registradas na época da promulgação. Busca-se, agora, a proibição total do fabrico e da comercialização, paralelamente à expropriação de todas as armas particulares registradas. Nesse debate, informações que seriam fundamentais adquirem formas duvidosas, quase sempre precedidas de expressões como "acho que", "consta que", "com certeza", "tudo indica", "seguramente" etc.
A questão é grave, pois se relaciona diretamente com direitos invioláveis, inscritos na Constituição e tutelados pela legislação penal. E o adjetivo "inviolável" indica, em termos jurídicos, tudo o que "está legalmente protegido contra qualquer violência e acima da ação da Justiça", conforme o Aurélio. Assim, num plano ideal, os órgãos de segurança pública relacionados no artigo 144 da Constituição deveriam dispor de condições efetivas, no presente, para garantir "aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país" a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à segurança e à propriedade, determinada no "caput" do art. 5º da Carta, bem como o disposto no inciso XI do mesmo artigo, onde se lê que "a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial".
A Carta declara ainda que "a segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio", por meio das Polícias Federal, Rodoviária Federal, Ferroviária Federal, Civil, Militar e Corpo de Bombeiros. Mas, no atual estágio da sociedade brasileira, teriam esses órgãos condições de garantir a segurança pública integralmente, de modo a tornar dispensável a aquisição legal de arma de fogo e respectiva munição por cidadãos de bons antecedentes e capazes, tendo em vista as hipóteses geradas pela exclusão de ilicitude prevista no art. 23, incisos I e II (estado de necessidade e legítima defesa) do Código Penal?
Outro aspecto sério da questão das armas é a escalada do contrabando. Mas também para isso já existem remédios na lei, desde que haja disposição para aplicá-la com rigor.
Vê-se, assim, que há preceitos penais suficientes para permitir um combate sistemático à existência clandestina e criminosa de armas de fogo e munições. Se esse combate deixa a desejar é porque vivemos numa época de acelerado desgaste do princípio de autoridade, por culpa ou dolo de quem tem obrigação de exercê-la.


Romeu Tuma, 67, é senador pelo PFL de São Paulo. Foi diretor-geral da Polícia Federal (1985 a 92) e secretário da Receita Federal (1992).



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