São Paulo, terça-feira, 09 de outubro de 2007

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O imbróglio da infidelidade

ALDO PEREIRA


Por temer conseqüências institucionais, talvez, o Supremo Tribunal Federal optou por sentença mais ambígua e menos severa


O TERMO "egrégio" provém do latim, "egregius", que significa "[aquilo] que sobressai no grupo", "que se distingue do ordinário".
Na gíria de hoje se diria "fora de série". Em figura que os gramáticos chamam de "derivação imprópria" e os retóricos -com o perdão da palavra- de antonomásia, o adjetivo "egrégio" pode converter-se em substantivo próprio para se referir, no Brasil, ao Supremo Tribunal Federal.
O Egrégio. É um termo a gosto de todo advogado esperançoso de, por adulação, captar simpatia desse colégio de juízes para sua causa. Ouviu-se muito "egrégio" nas sessões em que o STF acaba de julgar mais um espetáculo do crescimento da venalidade. Isto é, a política de suborno pela qual o governo tem aliciado para legendas acomodatícias parlamentares eleitos por outros partidos.
Falantes de inglês, quer nativos, quer os que façam proficiente emprego dele como segunda língua, decerto se divertiram com aquele uso insistente de "egrégio" como elogio.
O cognato inglês "egregious" significa algo que se destaca, sim, mas em razão de atributos depreciativos. É sinônimo de "gross" (vulgar, indecente, vergonhoso), de "outrageous" (chocante, ofensivo) e também de "notorious" (que, ao contrário do que se lê em más traduções, denota alguém famoso pelo mau caráter, não por boas qualidades.)
Essa desconcertante degradação semântica sofrida por "egregius" ao migrar do latim erudito para o vernáculo inglês só interessa ao pessoal da lingüística histórica. Já as contorções de raciocínio exibidas em nosso Egrégio durante o julgamento é questão que, dramática ou divertida, afeta a vida de todos nós.
Juízes tendem a reprovar como presunçosa ousadia todo comentário leigo de questões jurídicas. Mas lógica não é privilégio dos doutores da lei. Ademais, qual advogado comprometeria sua carreira com reprimenda ao Supremo?
Na interpretação do Tribunal Superior Eleitoral, certas disposições legais determinam que os mandatos de parlamentares pertencem não a estes, mas aos partidos pelos quais se elegeram. O STF confirmou tal juízo, mas desconsiderou dois de seus corolários. Corolário A: ao mudar sua filiação partidária depois de eleito, o parlamentar implicitamente renuncia; nem seria preciso cassá-lo, apenas informá-lo do desastrado descuido. Corolário B: caberia ao partido desfalcado o direito de pleitear preenchimento dos cargos vagos mediante a posse dos suplentes dos desertores.
Não foi assim que o STF interpretou a jurisprudência do TSE. Talvez por temer conseqüências institucionais que possivelmente adviriam de decorrente terremoto político, o STF optou por sentença mais ambígua e menos severa: que se admitam cassações, mas não de todos; e que os partidos desfalcados recuperem alguns lugares, mas não todos.
Pode-se entender que alguns infiéis sejam poupados, já que poderiam alegar, digamos, que seu partido trocou a orientação doutrinária original por outra que justificadamente ele repudia. Ou, então, que o partido o discriminava ou perseguia injustamente.
Menos compreensível é o STF ter resolvido que a fidelidade passa a ser obrigatória só depois de o TSE a ter reafirmado, em 27/3 último. Se as proibições legais já vigoravam antes dessa data, como considerar prescritas as violações anteriores? Cabe a juízes interpretar leis, não legislar.
Ainda assim, na maioria dos partidos afetados, pouco se resmungou. Ninguém sabe ao certo que desdobramentos esperar do imbróglio. Por exemplo, o compromisso de fidelidade partidária obrigará igualmente senadores, governadores, prefeitos e seus vices, o presidente e seu vice? Alguns argumentam que, nas eleições majoritárias, os votos são dados a candidatos, não a partidos.
Mas os que advogam fidelidade incondicional replicam que as leis eleitorais não mencionam candidatura avulsa. Logo, o mandato é do partido pelo qual o candidato concorre. Ressabiados, os líderes receiam que, se aplicada a casos anteriores a março, essa regra penalizaria todos.
Outra incerteza: se o projeto de anistia que tramita no Congresso resultar em lei, o STF poderá ser chamado a declará-la inconstitucional. Mas tal sentença, decerto parida a fórcipe, não sairia com berrante estigma de pirraça?
Tudo isso ponderado, nosso Egrégio até merece alguma simpatia. Como exigir que desenredasse com elegância esse emaranhado confuso em que, mais uma vez, tipicamente, fins e meios prevalecem sobre princípios?

ALDO PEREIRA , 75, é ex-editorialista e colaborador especial da Folha .

aldopereira.argumento@uol.com.br

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