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São Paulo, domingo, 09 de novembro de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Desafios de Estado

MARCO MACIEL


Instituições como o Conselho da República poderiam ter membros dos três, e não apenas de dois dos Poderes

Os desafios do sistema federativo não se cingem ao complexo problema do equilíbrio na distribuição de prerrogativas e competências entre os entes federados. Referem-se também ao insubstituível papel reservado aos Poderes do Estado.
Assim como a organização e as normas de funcionamento do Legislativo e do Executivo têm características distintas daquelas verificadas nos países organizados sob forma unitária, também o Judiciário assume protagonismos e responsabilidades próprias arbitrando conflitos entre os Estados e a União ou entre os Estados.
Ao dirimir tais conflitos, os tribunais exercem não só uma tarefa moderadora, mas criativa. Na medida em que os conflitos surgem em face de lacunas ou de inexistência de leis, os tribunais agem suprindo o papel não preenchido pelo Legislativo. Além disso, ao agir, devem estabelecer padrões, demarcar competências e fixar comportamentos nem sempre claros na Constituição e nas leis, relativamente às prerrogativas de cada um dos Poderes, contendo-os nos limites que lhes impõe a Lei Maior.
Quando se analisa a construção do federalismo norte-americano, é possível notar como o desempenho da Corte Suprema foi vital para o novo regime, decidindo casos, dirimindo dúvidas e estabelecendo precedentes que, na verdade, extrapolavam muito o mero exame da constitucionalidade de leis, normas, regras e procedimentos que tanto a União quanto os Estados aplicavam, em face das respectivas competências.
Mesmo com a ampla autonomia assegurada pela Constituição americana aos Estados, foram várias e de larga significação as questões dirimidas entre os interesses divergentes, entre eles e a União, entre o cidadão e os Estados e destes entre si. Essa sucessão de julgamentos terminou levando à definição corrente naquele país de que "a Constituição é o que os juízes dizem que ela é".
Entre nós, mesmo não tendo um protagonismo idêntico, pois o papel de guarda e intérprete da Constituição só se estabeleceu mais de um século depois dos Estados Unidos, o desempenho do Judiciário ficou condicionado a dois modelos: o de 1891, não-intervencionista, consoante o modelo americano, e o de 1946, do chamado federalismo "compartilhado".
A principal diferença, contudo, reside na orientação doutrinária que inspirou a criação da Corte Suprema como corte constitucional nos Estados Unidos e a do Supremo Tribunal Federal, no Brasil, como tribunal não exclusivamente constitucional. O papel de árbitro entre os Poderes dos Estados e de moderador nos conflitos entre os entes federativos não se consumou entre nós. A esses dois encargos foi adicionada a enorme gama de competências judiciárias que hoje abarrota o STF de processos de natureza meramente recursal.
A acumulação de funções políticas com atribuições de natureza judicial separou os dois modelos. E, apesar de as constituições de pós-guerra, quer em Estados unitários, quer naqueles organizados sob forma federativa, terem seguido, em grande parte, a tendência de dispor de uma corte exclusivamente constitucional, as tentativas de aproximar os dois padrões lamentavelmente nunca vingaram.
Hoje, o fato de estarmos votando emendas constitucionais que disciplinam matéria de competência estadual, em relação aos respectivos Poderes, não deixa de soar como se tivéssemos substituindo nossa Federação por um sistema semifederativo. Temos de reconhecer ser grande o grau de interferência da União em matéria que não é, nem histórica nem organicamente, típica da competência federal. Os conflitos que isso gera em matéria penal, dada a progressiva tipificação de crimes da competência federal, são conhecidos e têm repercussão até mesmo na área de execução penal, como acabamos de assistir com as dubiedades relativas ao cumprimento da pena de um delinquente que se tornou famoso nacionalmente.
Quanto mais penso nos desafios de governo, que são transitórios, mais me preocupo com os de Estado, que são permanentes e transcendem o horizonte de nossas precárias e transitórias aspirações.
A meu ver, é preciso que a fronteira entre as deficiências e carências de cada um dos Poderes não seja assunto privativo de suas exclusivas esferas de interesse. Instituições como o Conselho da República, de tão estritas atribuições constitucionais, poderiam ter membros dos três, e não apenas de dois dos Poderes, e servir de fórum para a discussão e a busca de soluções não só de questões do Estado, mas também da Federação, sendo indispensável incluir entre seus membros, em caráter rotativo, os governadores.

Marco Maciel, 63, é senador pelo PFL-PE. Foi vice-presidente da República (1995-1998 e 1999-2002), ministro da Educação (governo Sarney) e governador de Pernambuco (1978-82).


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