UOL




São Paulo, domingo, 09 de novembro de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

O medo venceu a esperança?

LUIZ CARLOS BRESSER PEREIRA


O medo, transvestido de prudência, voltou a imperar; as aspirações voltaram a se amesquinhar

A grandeza de uma nação mede-se pelo valor de suas realizações e pelo tamanho de suas esperanças. O Brasil, desde a grande crise que começou em 1980, teve alguns momentos de esperança -a transição democrática de 1984, a Constituição de 1988, o Plano Real, de 1994, e as eleições presidenciais de 2002-, mas logo as vontades esmoreceram e o país voltou a reduzir seus níveis de aspiração.
Um povo que constrói para si próprio uma sociedade estável, livre, próspera e razoavelmente justa tem muito do que se orgulhar. As realizações do passado, expressas seja nas instituições do país, seja nas idéias de seus pensadores, seja nas obras de seus artistas, continuam vivas no presente. O Brasil já tem muito do que se orgulhar, mas é ainda um país de desenvolvimento intermediário, e sua grandeza depende de sua capacidade de construir o futuro.
Já tivemos estadistas que governaram o país com grandeza e coragem. Já tivemos empresários, técnicos do governo e trabalhadores envolvidos em um projeto nacional de desenvolvimento. Já tivemos intelectuais e artistas pensando um Brasil maior. Não um vago Brasil do futuro, mas um Brasil dinâmico e afirmativo, empenhado em sua revolução industrial e nacional. Foi principalmente entre os anos 30 e os anos 70 que nossas aspirações foram grandes e que nossas ações foram corajosas. Um crescimento anual da renda por habitante inferior a 4% era considerado inaceitável.
Não vivíamos em um paraíso. Tivemos dois períodos autoritários nessa fase. Passamos por uma grande crise econômica e política no início dos anos 60. Mas tínhamos o futuro pela frente; estávamos voltados para um projeto maior.
Entretanto, desde 1980, com as crises da dívida externa e fiscal do Estado, mudaram os tempos. As aspirações se ajustaram às realizações. O medo venceu a esperança. Naquele início de década ainda houve um grande momento. Foi a luta pela transição democrática, consumada no início de 1985 e que teve em Franco Montoro e Ulysses Guimarães suas figuras simbólicas. Mas, logo a seguir, o fracasso do Plano Cruzado liquidou o pacto político democrático-popular de 1977.
A transição democrática não resultou em retomada do crescimento, mas trouxe liberdade e desenvolvimento político e social. No plano político, organizações de controle social da sociedade civil tornaram-se mais ativas, abrindo espaço para uma democracia participativa. Dois novos partidos -o PT e o PSDB-apontavam na direção da justiça social. Os direitos humanos passaram a ser mais ativamente defendidos. A criação do Ministério da Defesa consolidou o regime democrático.
No plano social, o país passava a gastar mais e melhor com educação, saúde, reforma agrária e programas de renda mínima. A melhoria dos índices sociais foi inequívoca. Mas esse avanço acontecia com um pé de barro: a economia do país continuava semi-estagnada, crescendo menos de 1% por habitante.
Em 1994, porém, temos um grande acontecimento econômico: o Plano Real neutraliza a inércia inflacionária e acaba com a alta inflação. As esperanças se renovam.
Entretanto estávamos, nesse momento, no bojo de um novo fluxo de capitais para os países em desenvolvimento, agora chamados "mercados emergentes". E de uma nova e infeliz proposta vinda do Norte, o Segundo Consenso de Washington, que adicionava às reformas liberais do primeiro uma reforma adicional, a abertura financeira. A partir dela os países em desenvolvimento poderiam crescer com poupança externa, ou seja, com câmbio valorizado, déficit em conta corrente e aumento do endividamento, mesmo que já altamente endividados externamente. Um contra-senso econômico, que está por trás das crises financeiras dos anos 90.
Nossas elites não tiveram o discernimento nem a coragem necessários para enfrentar Washington e os mercados financeiros internacionais e dizer não ao populismo cambial que o FMI, paradoxalmente, patrocinava através do Segundo Consenso de Washington. O país continuou semi-estagnado.
A vitória da oposição nas eleições presidenciais de 2002 refletiu os maus resultados econômicos. E as esperanças renovaram-se. Mas por pouco tempo. A continuidade da submissão à ortodoxia convencional originada em Washington e Nova York logo encarregou-se de as desmentir. O medo, transvestido de prudência, voltou a imperar; as aspirações voltaram a se amesquinhar, as elites a se apequenar diante de uma nação perplexa.
Essa mediocridade está presente em toda parte. Em uma reunião recente, economistas e empresários concordaram com a previsão do Banco Central de que o país deverá crescer entre 1,5% e 2% por habitante em 2003. E que, nos anos seguintes, essa taxa deverá funcionar como um teto, dadas as altas dívidas externa e interna. Essa previsão, que me indignou, foi vista com naturalidade pelos demais presentes à reunião, inclusive alguns jovens. Pareciam satisfeitos, reconfortados. Poderia ter sido pior...
Quando terminou a reunião, aproximei-me desses jovens e disse-lhes algo assim: "Está bem, 1% a 1,5% de crescimento da renda por habitante nos próximos anos é satisfatório. Está bem para vocês, para seus filhos e para seus netos. Não importa que os países ricos cresçam em média 2,5% ao ano e que a China cresça a 7%. Para nós está bom...".
Disse essas coisas entre indignado e triste. Será que o medo e o acomodamento venceram definitivamente a esperança? Será que o Brasil perdeu a capacidade de pensar com a própria cabeça e reencontrar o caminho do desenvolvimento?


Luiz Carlos Bresser Pereira, 69, é professor de economia na FGV-SP e editor da "Revista de Economia Política". Foi ministro da Ciência e Tecnologia e da Administração Federal e Reforma do Estado (governo FHC), além de ministro da Fazenda (governo Sarney).

Site: www.bresserpereira.org.br



Texto Anterior: TENDÊNCIAS/DEBATES
Marco Maciel: Desafios de Estado

Próximo Texto: Painel do Leitor
Índice

UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.