São Paulo, domingo, 10 de janeiro de 1999

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O ano da virada



Se o Brasil não mudar suas políticas cambial e de comércio externo, em breve a moratória será inescapável
PAUL SINGER

"Quando tudo parece irremediável, acontece o inesperado." (Fernando Henrique Cardoso, quando ainda sociólogo)

O ano que passou foi, sem dúvida, o pior, do ponto de vista econômico e social, do primeiro mandato de FHC: o crescimento estagnou-se, o desemprego e a inadimplência bateram recordes. O Plano Real perdeu sua viabilidade a partir do momento em que os investidores externos deixaram de acreditar nas promessas do governo.
Depois que a fuga de capitais se tornou, em setembro de 98, irreversível, só o FMI e congêneres crêem que o Brasil acabará em breve, por obra exclusiva das forças de mercado, ganhando tanta competitividade que o déficit nas transações correntes com o mundo se transformará em superávit, capacitando o país a pagar o serviço de sua dívida externa sem depender de novos aportes externos de capital.
Desde então, o Brasil se encontra na estranha posição de receber vultosos empréstimos em moeda "forte" do FMI e associados para vender os dólares a residentes e não-residentes, que ou os entesouram ou os aplicam no exterior. O dinheiro passa pelo Tesouro brasileiro, no qual incha a dívida externa, para ser transferido a especuladores, que o levam embora. De acordo com as autoridades brasileiras e internacionais, essa situação anômala se deve apenas a uma perda de credibilidade do Brasil, transitória e perfeitamente remediável, desde que nosso déficit público seja contido.
Os dados das contas externas indicam o oposto. O Brasil já está há algum tempo superendividado; se não mudar suas políticas cambial e de comércio externo, em breve a moratória será inescapável. O capital que ainda ousa se aplicar aqui exige enormes juros para compensar os riscos, o que amplia o peso do serviço da dívida, tornando-o desproporcional ao valor das divisas obtidas com exportações. Isso mostra que nossa perda de credibilidade tende a se tornar permanente e não será corrigida por cortes no gasto público e aumento de impostos.
O pior é que a sustentação desse modelo inviável exige a compressão cada vez maior da produção. O Brasil pune quem quer produzir com políticas monetária e fiscal recessivas, levando à ruína empresas e trabalhadores. Em 1998, esses fatos tornaram-se inegáveis, o que desencadeou um processo -ainda lento e hesitante- de realinhamento político e social. Federações de indústrias e centrais sindicais deram-se as mãos para mobilizar a sociedade em defesa da produção. É um primeiro passo essencial no reconhecimento de que urge substituir a política econômica vigente.
O repúdio à política econômica começou a se alastrar ainda antes das eleições. Isso pode explicar o fato de os erros das projeções em algumas pesquisas terem sido sistematicamente favoráveis aos candidatos situacionistas. Tudo indica que milhões de eleitores resolveram, na véspera do primeiro turno, votar em Lula ou Ciro Gomes. Essa reviravolta parece ter se acentuado nos dias que separaram o primeiro do segundo turno, levando à vitória candidatos oposicionistas em três dos quatro principais Estados -Rio, Minas e Rio Grande do Sul.
FHC foi reeleito no primeiro turno, o que deveria ter reforçado decisivamente o modelo vigente. Mas o que se vem verificando é o contrário. No próprio situacionismo, a resistência a esse modelo tornou-se explícita a partir do momento em que a reeleição foi confirmada, o que provocou a manobra diversionista do "Ministério do Desenvolvimento" por parte de FHC, complementada com o inesperado encontro com Lula. Procurou-se dar a entender que correções de rumo seriam possíveis, desde que a essência do modelo (liberação financeira e repressão monetária) fosse preservada.
A manobra fracassou porque a virada, de fato, já começou e não pode mais ser contida por pequenas concessões. Os setores sociais interessados no desenvolvimento das forças produtivas estão de costas contra a parede e começam a compreender que o que lhes acontece não é fatal. As tendências objetivas da economia não lhes deixam alternativa: ou se unem e saem à luta ou serão esmagados.
Por isso, a virada que a hemorragia de capitais provocou em 98 provavelmente se aprofundará. É bem possível que as previsões de que em 99 o estrangulamento da produção se agravará sejam falseadas. Em vez de cenário de conformismo, o Brasil poderá ser palco de grandes mobilizações.



Paul Singer, 64, economista, é professor titular da Faculdade de Economia e Administração da USP (Universidade de São Paulo) e pesquisador do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento). Foi secretário municipal do Planejamento de São Paulo (gestão Erundina).





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