São Paulo, sábado, 10 de fevereiro de 2007

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TENDÊNCIAS/DEBATES

É correto aumentar a parcela do Fundo Partidário destinada aos partidos nanicos?

NÃO

Partidos, seitas, legendas de aluguel

FÁBIO WANDERLEY REIS

ALGUM TEMPO atrás, o TSE tirou do chapéu a decisão sobre a "verticalização", amarrando as candidaturas nos diversos níveis federativos, em interpretação que tornava inaceitavelmente rígido o sentido do "caráter nacional" atribuído pela Constituição aos partidos. Mas, com a decisão de agora sobre a distribuição dos recursos do Fundo Partidário, na esteira do impedimento imposto pelo STF à cláusula de barreira, os partidos, na visão do TSE, não só não precisam ser nacionais: eles não precisam sequer ter votos.
A meu ver, o que a Justiça vem fazendo redunda, sim, em atividade legislativa imprópria e inconsistente. De todo modo, temos mais um episódio da confusa discussão nacional sobre a natureza dos partidos políticos e suas relações com a operação da democracia. Creio que o pano de fundo mais importante é o apego difuso ao modelo da "política ideológica", em que o ideal consistiria em ter representados os pontos variados de uma escala direita-esquerda, ao longo da qual partidos e eleitores se distribuiriam "apropriadamente". O modelo (que não corresponde, na verdade, senão à experiência mais ou menos fugaz de alguns países) se contrapõe ao empenho de constituir maioria e à busca de eficácia que a inserção no jogo eleitoral induz.
Naturalmente, as ligações da decisão do TSE com o modelo em sua forma estilizada são remotas. Mas julgo serem evidentes as ligações com uma expressão menos remota dos supostos básicos nele envolvidos, ou seja, a preocupação exclusiva ou excessiva com que os partidos políticos cumpram a função de vocalizar ou fazer presente no âmbito político-institucional cada foco particular de interesse ou identidade que se possa distinguir, o que é visto em termos de representatividade democrática. A decisão do TSE não teria como pretender justificar-se se não envolvesse a suposição de que o tratamento igualitário a todos os partidos formalmente constituídos atenderia a esse desiderato democrático de representatividade.
Mas a literatura de ciência política sobre os partidos há muito distingue -e ressalta a necessidade de equilíbrio- entre a função de vocalização e "representação" mais estrita dos interesses e identidades e a de somar ou agregar interesses diferenciados (e mesmo identidades várias, com a conseqüência fatal de diluí-las em alguma medida), dando-lhes, assim, condições de participação eficiente nas disputas eleitorais e de acesso às decisões de governo. Isso se ramifica, entre outras coisas, no contraste entre sistemas majoritários e proporcionais de representação. Se há vantagens e inconvenientes de parte a parte que reforçam a recomendação da busca de equilíbrio, cabe ponderar que o reclamo de proporcionalidade supõe, para fazer sentido, que os partidos proporcionalmente representados sejam partidos autênticos, e não meras "legendas de aluguel". A decisão do TSE, ao contrário, favorece, em seu formalismo míope, justamente a proliferação de legendas que nada significam.
Mas há paradoxos insanáveis no apego, em geral, à representação sem distorção de identidades e interesses dados. Por que não representar as "tendências" ou alas dentro de cada partido, serão elas sempre menos "autênticas"? No limite, por que não representar cada cidadão ou cidadã, o que acaba por comprometer de vez a própria idéia de representação? É ótimo, sem dúvida, que possamos ter uma sociedade civil rica e diversificada, em que movimentos sociais variados e múltiplas iniciativas autônomas possam manifestar-se de forma organizada e trazer à cena pública seus objetivos próprios e opiniões sobre questões de qualquer natureza. Mas um partido político que não some ou agregue simplesmente não é um partido, ainda que talvez seja uma entidade "fisiologicamente" eficaz ou, quem sabe, uma seita coesa e apta a outros jogos que não o eleitoral. E, mesmo do ponto de vista do ideal democrático, é difícil sustentar que a proliferação de partidinhos inviáveis (ou pior...) seja preferível a partidos de porte adequado que possam eventualmente canalizar e processar no governo as aspirações populares.


FÁBIO WANDERLEY REIS, 69, cientista político, doutor pela Universidade Harvard (EUA), é professor emérito da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais).


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