São Paulo, Quarta-feira, 10 de Fevereiro de 1999
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"Central do Brasil" e o critério nacional



Há a crença difusa de que os povos ricos do norte sabem distinguir melhor que nós o certo do errado, o belo do feio
LUIZ CARLOS BRESSER PEREIRA

Como todos os brasileiros, ficarei feliz se "Central do Brasil" ganhar o Oscar de melhor filme estrangeiro. É um dos melhores filmes brasileiros de todos os tempos. Uma obra-prima, com uma temática ao mesmo tempo muito brasileira e absolutamente universal.
Mas fico incomodado quando vejo a importância que os brasileiros dão a esse eventual prêmio -a qual se reflete na mídia, ultimamente concentrada no receio de que "A Vida É Bela" (muito inferior, mas com um apelo melodramático mais fácil e um esforço de marketing maior) ganhe o prêmio.
Afinal, qual a importância de um filme brasileiro ganhar um Oscar? Quanto aos benefícios comerciais, não há dúvida. Mas o que há mais? Até que ponto estarão o Brasil ou os brasileiros "consagrados" por esse prêmio? Qual a legitimidade da Academia de Hollywood para conferir prêmios que realmente signifiquem alguma coisa?
A legitimidade é muito pequena. "Central" é muito melhor que a maioria dos ganhadores do Oscar (não só o de filme estrangeiro, mas incluindo os filmes em inglês). Ainda que tenha me divertido com o último ganhador, "Titanic", há poucas dúvidas de que a qualidade artística do filme brasileiro seja incomparavelmente maior. Os critérios de concessão melhoraram, mas continuam, no mínimo, discutíveis.
A importância que se dá a essa premiação no Brasil faz pouco sentido, mas é um fato -que, a meu ver, reflete o subdesenvolvimento cultural do povo e das elites brasileiras. A falta de um critério nacional para julgar sua produção. A necessidade de se legitimar no exterior. A crença difusa de que os povos ricos do norte sabem distinguir melhor que nós o certo do errado, o belo do feio, a verdade do engano. Em outras palavras, reflete o que Roland Corbisier chamava de "complexo cultural colonial" e eu chamo de "complexo de inferioridade colonial". Imaginávamos superar aos poucos, com o desenvolvimento econômico, essa atitude culturalmente subordinada. Infelizmente, essa previsão não se confirmou, apesar do progresso havido.
Continuamos muito preocupados em saber como nos vêem lá fora e indignados porque sabem pouco do Brasil ou pensam que somos só o país do futebol e do Carnaval. Insistimos em uma política ou em um jogo de construção de confiança (ou melhor, "confidence building game", já que nosso interesse é principalmente agradar a Washington, Nova York ou Los Angeles...) em todas as áreas de nossa ação. Para isso, nós nos subordinamos a seus critérios de verdade, justiça e beleza, em vez de tratar de saber o que é verdadeiro, justo e belo para nós. Em consequência, muitas vezes cometemos erros fatais e nos subordinamos de forma patética.
Claro, temos muito a aprender com os demais países. Mas daí não se segue que eles se transformem em critério para nossa ação, nossa auto-estima, nosso auto-respeito. Não há nenhuma razão para que lá fora saibam melhor que nós o que devemos fazer e pensar aqui.
No presente caso, o absurdo da situação torna-se gritante. A obra que se espera ver "consagrada" é um filme que não tem um fiapo de subordinação cultural; usa os nossos critérios estéticos e não os de Hollywood; emprega nossos recursos limitados e não orçamentos nababescos. Se somos capazes de fazer um filme como esse e, em muitas ocasiões, de fazer cinema, teatro, desfile de escola de samba, música, literatura, esporte e ciência "de Primeiro Mundo", que não ficam a dever ao que há nos países desenvolvidos, por que dar tanta importância a instâncias cuja maior legitimidade está em serem estrangeiras?
Mas será que estou de volta aos tempos do velho nacionalismo? De forma alguma. Sei dos enormes interesses comuns que temos com os países desenvolvidos; sei que o jogo que há entre eles e os países em desenvolvimento tem soma maior do que zero; não aceito velhas teses sobre o imperialismo. Quero que o Brasil participe desse grande mundo, aprenda com ele, seja competitivo na economia e na cultura.
Tenho, porém, imensa dificuldade em adotar um critério estrangeiro para ações e avaliações. Nosso critério há de ser nacional. Precisa partir da nossa realidade e das nossas necessidades. Deve considerar os valores universais e não pode prescindir da participação de especialistas do exterior. Mas não pode se subordinar a avaliadores ou a critérios que não sejam os nossos.
Nada garante que, usando nossos critérios, tomemos as decisões mais acertadas, produzamos a melhor cultura, a melhor ciência, adotemos as melhores políticas públicas. Podemos, facilmente, também errar. Mas é melhor errar a partir do nosso julgamento do que subordiná-lo a terceiros. A busca da identidade nacional é a recusa do inautêntico, do postiço, é o auto-respeito que se expressa no respeito aos outros.
"Central" é uma expressão soberba de nossa identidade. Será valorizado por qualquer prêmio que receba. Mas seu valor maior é aquele que deriva do respeito que temos por nós mesmos.


Luiz Carlos Bresser Pereira, 64, é ministro da Ciência e Tecnologia e professor titular de economia da Fundação Getúlio Vargas (SP). Foi ministro da Administração Federal e Reforma do Estado (governo Fernando Henrique Cardoso) e da Fazenda (governo Sarney).




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