São Paulo, sexta-feira, 10 de março de 2000


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Genéricos e a retórica da qualidade


A razão única para o superfaturamento de fármacos pelas multinacionais é a sonegação fiscal


ROGÉRIO CEZAR DE CERQUEIRA LEITE

Em sua longa e infelizmente bem-sucedida campanha para evitar a adoção do medicamento genérico, a Abifarma, representante oficial das empresas multinacionais do setor farmacêutico, adotou como pilar central de sua estratégia uma persistente retórica em torno do vocábulo "qualidade".
"A diferença básica entre os medicamentos genéricos que estão sendo agora introduzidos em relação aos DCBs é a qualidade" (DCBs são os produtos vendidos sob "denominação comum brasileira"), de acordo com o farmacologista Gilberto de Nucci, em artigo publicado neste espaço em 16/2. E essa qualidade "é assegurada por meio da exigência de equivalência farmacêutica e bioequivalência introduzida pela atual administração".
Em 18/9/99, o "Le Monde" publicou uma lista de 286 medicamentos inúteis, assim classificados pela Agência de Segurança Sanitária Francesa dentre 1.176 produtos examinados. Ou seja, um quarto dos medicamentos examinados era inútil. Na área de cardiologia, dentre 691 examinados, 185 eram completamente inúteis, 53 correspondiam medianamente a suas prescrições e 10, fracamente. Ou seja, quase 27% eram absolutamente inúteis, e 10%, insatisfatórios.
Quando um cardíaco toma um medicamento ineficaz, arrisca sua vida. Esses medicamentos são todos produzidos por grandes laboratórios multinacionais, sendo, quase todos, com o mesmo nome ou com nomes diferentes, produzidos também no Brasil -30 deles com exatamente a mesma formulação. De acordo com os critérios da Abifarma, esses medicamentos teriam todos boa qualidade. São inúteis, fatais, mas de qualidade.
Para um físico, entretanto, um medicamento tem qualidade quando alcança os objetivos propostos. Para a Abifarma um medicamento tem qualidade quando apresenta a mesma fórmula química e é absorvido pelo organismo humano da mesma maneira que um outro tomado como padrão. Só que esse outro medicamento, dito de referência, não foi antes testado. Não se sabe se no Brasil foi adotado o mesmo processo industrial (rota de síntese é parte do processo industrial) descrito pelo produtor e homologado por agências no exterior.
Ou seja, o procedimento adotado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária prova, na melhor das hipóteses, que o medicamento genérico testado é equivalente a um outro idealizado, porém nunca testado no Brasil, senão no que diz respeito à formulação e à biodisponibilidade. Quanto à eficácia terapêutica nada é verificado.
Outra vertente dessa mesma "retórica da qualidade" -que é, aliás, a mais usada pelos médicos avessos ao medicamento genérico- refere-se à confiabilidade dos grandes laboratórios multinacionais. Medicamentos de nome de fantasia têm qualidade porque são produzidos por empresas confiáveis. Todavia, com exceção de alguns laboratórios clandestinos, as últimas transgressões de porte foram constatadas justamente em empresas multinacionais. Também esses 25% de medicamentos inúteis identificados pelo governo francês são produzidos pelas mesmas multinacionais supostamente confiáveis.
Apesar dos esforços do Banco do Brasil para camuflar dados de importação de fármacos, um detalhado estudo levado a cabo na Escola de Química da Universidade Federal do Rio de Janeiro demonstra o crescente e insofismável superfaturamento realizado por empresas multinacionais ("Indústria Farmacêutica Brasileira: Estrutura e a questão dos preços de transferência", Ricardo Isidoro da Silva, 1999).
Enquanto as empresas nacionais adquiriram antibióticos a preços inferiores a US$ 10/kg, entre 1986 e 1996, as multinacionais pagaram, nesse mesmo período, uma média de US$ 500/kg. As multinacionais, por certo, argumentarão que essa comparação não é realista, pois as nacionais poderiam estar adquirindo materiais inferiores ou menos elaborados.
Todavia há um outro conjunto de dados que demonstra definitivamente o superfaturamento, apesar do acesso apenas a dados agregados do Banco do Brasil. Em 1986, talvez devido a denúncias de superfaturamento, os preços médios de importação de antibióticos pelas multinacionais, fossem eles provenientes da matriz ou de outra fonte, eram de cerca de US$ 200/kg. Desde então, os preços intracompanhia começaram a se distanciar daqueles praticados quando o antibiótico era adquirido de qualquer fonte que não a matriz. Em 1996 chega a ser o preço médio intracompanhia (US$ 700/kg) seis vezes maior que o preço intercompanhias (US$ 100/kg).
O superfaturamento calculado nesse estudo foi de aproximadamente US$ 600 milhões por ano, para o total de fármacos.
A razão única para esse superfaturamento é a sonegação fiscal. Essas riquíssimas companhias estariam assim pilhando um país pobre, com milhões de destituídos. Entidades que são capazes de um latrocínio permanente não são confiáveis e não merecem a fé cega que muitos médicos brasileiros nelas depositam. Aliás, a CPI dos Medicamentos não precisa levantar sigilo bancário ou telefônico das multinacionais, o que por sinal seria inútil, para comprovar superfaturamento. Basta exigir do Banco do Brasil dados desagregados.


Rogério Cezar de Cerqueira Leite, 68, físico, é professor emérito da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) e membro do Conselho Editorial da Folha.



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