São Paulo, sexta-feira, 10 de março de 2000 |
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Sociedade órfã
VICENTE MALHEIROS DA FONSECA Frustrante a proposta de fixação do "teto" remuneratório do funcionalismo público. Recentemente, os juízes federais e trabalhistas chegaram a programar uma paralisação coletiva. O motivo principal: a falta de fixação do teto único, que dependia de lei de iniciativa conjunta dos presidentes da República, da Câmara dos Deputados, do Senado e do STF, como manda a Constituição. A inércia, por dois anos, revelava desrespeito à Lei Maior, agravado pela crise institucional entre os Poderes da República. Os magistrados não querem apenas aumento salarial, tampouco soluções paliativas ou penduricalhos, mas a definição do teto único e transparente. Reagem contra o tratamento inadequado da relevante questão, geradora do confronto com o Estado Democrático de Direito. Uma afronta aos princípios da hierarquia funcional (existem servidores que percebem mais do que os magistrados) e da moralidade, com reflexos desastrosos no serviço judiciário. É chegado o momento de resistir. É equivocado supor que os juízes não podem reagir, a pretexto de que a ética os inibe de apreciar paralisações dos servidores. O magistrado deve ser imparcial, para garantia do cidadão. Não quer dizer que seja neutro, alheio à realidade política e socioeconômica. A neutralidade da magistratura é um mito. A visão crítica do julgador é essencial à sua independência moral, funcional e intelectual. Assim, deve ter um comportamento ético profissional, mas não indiferente, como se estivesse fora do mundo, postura que influi na atividade jurisdicional. O interesse público não pode prescindir da supremacia da Constituição, o que afasta a idéia do espírito de corpo. Os juízes, especialmente os federais e trabalhistas, sempre lutaram pela transparência da política remuneratória. E continuarão lutando. Mas a proposta de fixação do teto é prejudicial aos juízes, especialmente aos mais antigos na carreira e, no médio prazo, a todos, enfim. Explico: o adicional de tempo de serviço não foi excluído do teto. Não vou agora questionar outras exceções que, em última análise, beneficiam parlamentares, duplas aposentadorias e outras situações. Contudo é inacreditável que os magistrados integrantes do Poder Judiciário da União (federais, trabalhistas e militares), sobretudo os que contam com mais tempo de trabalho, tenham sido execrados. Afinal, que estímulo terão os juízes mais novos? O magistrado não pode exercer outra função pública, salvo o magistério. A remuneração digna "é a única maneira de assegurar a absoluta independência da magistratura. Por isso, não se pode falar em reforma do Poder Judiciário sem começar por falar na remuneração condigna da magistratura" (Orlando Teixeira da Costa). A Constituição continua desrespeitada: muitos continuarão a ganhar mais do que os ministros do Supremo Tribunal Federal. Há gritantes desigualdades entre juízes federais, agora mais inferiorizados diante de parlamentares, servidores e magistrados estaduais com altos ganhos. É claro que não se fixava o teto para manter privilégios. Esses privilégios persistem. Não há transparência quanto aos altos salários. Ou seja, nada de novo no horizonte. Só mais privilégio para quem já é privilegiado. Penduricalhos viraram "penduricões". O auxílio-moradia, objeto de ação judicial perante o STF desde o ano passado, é matéria distinta da fixação do teto constitucional, pois visa recompor a equivalência remuneratória entre magistrados e parlamentares, assegurada pela lei 8.448/92. Não satisfaz ao ideário da magistratura e aos anseios da sociedade organizada, que exige transparência na política salarial, com um teto único, e não artificial. Ainda é tempo de corrigir parte do equívoco. Basta excluir do teto o adicional de tempo de serviço dos magistrados, sem prejuízo da necessária atualização dos vencimentos, para preservar o seu valor aquisitivo. Desde 1995, magistrados federais, como muitos servidores, tiveram ganhos congelados. É claro que não estou defendendo o chamado "repicão", tão imoral quanto o fato de servidores com menos tempo, hierarquia e responsabilidade funcionais ganharem mais que juízes, o que constitui uma inversão de valores e um absurdo inominável. Se isso não for feito, o desastre será inevitável. Com o enfraquecimento da magistratura da União perdem os cidadãos, contribuintes e trabalhadores. E a sociedade brasileira fica mais órfã. Na verdade, sem pai, sem mãe, sem direito e sem justiça. Vicente José Malheiros da Fonseca, 51, é juiz-presidente do TRT (Tribunal Regional do Trabalho) da 8ª região (Belém-PA) e coordenador do Colégio de Presidentes e Corregedores de TRTs. Texto Anterior: TENDÊNCIAS/DEBATES Rogério Cezar de Cerqueira Leite: Genéricos e a retórica da qualidade Próximo Texto: Painel do leitor Índice |
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