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São Paulo, quinta-feira, 10 de abril de 2003

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HÉLIO SCHWARTSMAN

Vitória de Bush

Existem vários tipos de vitória. Há os triunfos maiúsculos e contundentes, como soem ser os do Corinthians sobre seus adversários, mas há também aqueles êxitos hesitantes, que mal se distinguem das derrotas.
O caso mais emblemático de vitória com ares de ruína foi o da de Pirro 1º, o inquieto rei de Epiro, primo de Alexandre, o Grande, e valoroso militar, que se envolveu num bom número das batalhas travadas na parte européia do Mediterrâneo no século 3º a.C. Foi numa delas, a de Ásculo, em 279, que derrotou os romanos, mas com tamanhas perdas para seu Exército que teria exclamado ao fim do embate: "Outra vitória igual a esta será o meu fim!". Pirro acabaria expulso da península Itálica, mas conquistou seu lugar na história ao emprestar seu nome à expressão "vitória de Pirro".
Menos célebre mas não menos mortífera foi a vitória de Cadmo, o mítico herói grego, filho de Agenor, irmão de Europa e tio de Minos. Segundo o mito, Cadmo derrotou o dragão de Tebas que lhe matara todos os companheiros. Depois, instruído pela deusa Atena, semeou os dentes do animal, dos quais brotaram guerreiros armados. Lançando uma pedra no meio do grupo, levou esses combatentes a lutarem entre si, até que restassem apenas cinco sobreviventes, que o ajudariam a fundar Cadméia, a cidadela de Tebas.
Como não convém questionar os deuses e, imagino, muito menos as deusas, ficamos sem entender bem por que os guerreiros brotados tiveram de ser sacrificados nessa modalidade ancestral de "fogo amigo". O fato é que a expressão "vitória cadméia" ou "vitória de Cadmo" foi utilizada por Heródoto, o pai da história, para designar um triunfo militar cujos custos são altos demais.
Outra vitória que deverá entrar para a história é a de George W. Bush, filho de George e Barbara, irmão de Jeb. Como Pirro e Cadmo, Bush pagará um alto preço pelo seu triunfo, mas não com soldados anglo-americanos, cujas mortes não devem chegar a duas centenas. Para depor Saddam Hussein, Bush sacrificou, além das vidas de milhares de iraquianos, a ONU, a Otan (aliança militar ocidental), a coalizão antiterror, a imagem dos EUA diante do mundo e a própria noção de que a humanidade progride, criando padrões cada vez mais civilizados no convívio entre as nações.
Mas seria injusto colocar Bush ao lado de Pirro e de Cadmo. O presidente norte-americano coleciona realizações com as quais o general e o herói gregos não poderiam nem sonhar.
Com pouco mais de dois anos de governo, Bush já solapou várias iniciativas internacionais como o Protocolo de Kyoto, o Tribunal Penal Internacional e o consenso da ONU para o controle do tráfico de armas leves, para citar apenas alguns de seus feitos.
No plano interno, afrouxou direitos civis e ampliou controles policiais sobre os cidadãos. Em relação a estrangeiros, abriu a possibilidade de julgamentos sumários em cortes militares de exceção. Ignorou olimpicamente as Convenções de Genebra.
Alguns de seus principais auxiliares estão envolvidos em suspeitas de relações pouco saudáveis com empresas metidas em fraudes. Agora surgem notícias de que grupos empresariais ligados a secretários de Bush serão favorecidos em contratos para a "reconstrução" do Iraque. Se confirmadas, seria a legalização da pilhagem.
Os deuses têm um senso de humor macabro: o presidente que não venceu a eleição vence a guerra da qual não emergem vencedores, só derrotados.


Hélio Schwartsman é editorialista da Folha. Hoje, excepcionalmente, não é publicado o artigo de Otavio Frias Filho, que escreve às quintas-feiras nesta coluna.


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