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HÉLIO SCHWARTSMAN
Vitória de Bush
Existem vários tipos de vitória. Há
os triunfos maiúsculos e contundentes, como soem ser os do Corinthians sobre seus adversários, mas há
também aqueles êxitos hesitantes, que
mal se distinguem das derrotas.
O caso mais emblemático de vitória
com ares de ruína foi o da de Pirro 1º, o
inquieto rei de Epiro, primo de Alexandre, o Grande, e valoroso militar,
que se envolveu num bom número
das batalhas travadas na parte européia do Mediterrâneo no século 3º a.C.
Foi numa delas, a de Ásculo, em 279,
que derrotou os romanos, mas com
tamanhas perdas para seu Exército
que teria exclamado ao fim do embate: "Outra vitória igual a esta será o
meu fim!". Pirro acabaria expulso da
península Itálica, mas conquistou seu
lugar na história ao emprestar seu nome à expressão "vitória de Pirro".
Menos célebre mas não menos mortífera foi a vitória de Cadmo, o mítico
herói grego, filho de Agenor, irmão de
Europa e tio de Minos. Segundo o mito, Cadmo derrotou o dragão de Tebas que lhe matara todos os companheiros. Depois, instruído pela deusa
Atena, semeou os dentes do animal,
dos quais brotaram guerreiros armados. Lançando uma pedra no meio do
grupo, levou esses combatentes a lutarem entre si, até que restassem apenas
cinco sobreviventes, que o ajudariam
a fundar Cadméia, a cidadela de Tebas.
Como não convém questionar os
deuses e, imagino, muito menos as
deusas, ficamos sem entender bem
por que os guerreiros brotados tiveram de ser sacrificados nessa modalidade ancestral de "fogo amigo". O fato
é que a expressão "vitória cadméia"
ou "vitória de Cadmo" foi utilizada
por Heródoto, o pai da história, para
designar um triunfo militar cujos custos são altos demais.
Outra vitória que deverá entrar para
a história é a de George W. Bush, filho
de George e Barbara, irmão de Jeb.
Como Pirro e Cadmo, Bush pagará
um alto preço pelo seu triunfo, mas
não com soldados anglo-americanos,
cujas mortes não devem chegar a duas
centenas. Para depor Saddam Hussein, Bush sacrificou, além das vidas
de milhares de iraquianos, a ONU, a
Otan (aliança militar ocidental), a coalizão antiterror, a imagem dos EUA
diante do mundo e a própria noção de
que a humanidade progride, criando
padrões cada vez mais civilizados no
convívio entre as nações.
Mas seria injusto colocar Bush ao lado de Pirro e de Cadmo. O presidente
norte-americano coleciona realizações com as quais o general e o herói
gregos não poderiam nem sonhar.
Com pouco mais de dois anos de governo, Bush já solapou várias iniciativas internacionais como o Protocolo
de Kyoto, o Tribunal Penal Internacional e o consenso da ONU para o
controle do tráfico de armas leves, para citar apenas alguns de seus feitos.
No plano interno, afrouxou direitos
civis e ampliou controles policiais sobre os cidadãos. Em relação a estrangeiros, abriu a possibilidade de julgamentos sumários em cortes militares
de exceção. Ignorou olimpicamente as
Convenções de Genebra.
Alguns de seus principais auxiliares
estão envolvidos em suspeitas de relações pouco saudáveis com empresas
metidas em fraudes. Agora surgem
notícias de que grupos empresariais ligados a secretários de Bush serão favorecidos em contratos para a "reconstrução" do Iraque. Se confirmadas, seria a legalização da pilhagem.
Os deuses têm um senso de humor
macabro: o presidente que não venceu
a eleição vence a guerra da qual não
emergem vencedores, só derrotados.
Hélio Schwartsman é editorialista da Folha. Hoje, excepcionalmente, não é publicado o artigo de Otavio Frias Filho, que escreve às quintas-feiras nesta coluna.
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