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São Paulo, quinta-feira, 10 de abril de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

A medida da pobreza

WALTER BELIK

Desde o lançamento do Projeto Fome Zero, em outubro de 2001, pelo Instituto Cidadania, estabeleceu-se um grande debate entre especialistas: qual o tamanho "exato" do público-alvo das políticas de combate à fome? Evidentemente, a polêmica não decorre apenas da preocupação com o rigor científico. O pano de fundo são as diferentes concepções de como fazer política social no Brasil e, principalmente, do que se pretende com elas -perpetuar a fila do sopão ou ampliar o espaço da inclusão?
De um lado, há uma ênfase no foco estatístico das ações, justificável diante da escassez de recursos públicos e do dever, óbvio, de coibir desperdícios. Para muitos, a minúcia de uma perfuratriz vertical seria necessária, por exemplo, para evitar que pobres não-famélicos viessem a se beneficiar de ações do Fome Zero.
Outra opção diante desse desafio é utilizar o critério de renda. É um bom filtro orientador para ações que visam não apenas mitigar a fome, mas erradicar os fatores que estão na sua origem. Acertadamente, a meu ver, é o que faz o programa Fome Zero. Trata-se, neste caso, de adotar uma linha de pobreza abaixo da qual o cidadão não tem meios para suprir suas necessidades básicas e, ainda, ter acesso a uma dieta adequada. É verdade, fome e pobreza não são sinônimos. Muitos pobres resolvem seu desafio alimentar de forma precária. Vivem de esmolas, por exemplo. Outros dependem de favores. Duzentos mil buscam sustento em lixões espalhados pelo país.Tecnicamente, podem até não passar fome. Mas certamente vivem uma rotina de insegurança alimentar.


O país não tem legiões de famélicos, mas quase um terço de sua gente convive com o gosto amargo da insegurança alimentar


Soa a platitude, mas o debate tornou relevante o óbvio: quanto mais baixo o nível de renda, maior o déficit calórico. O que muda, na verdade, é o contingente abrangido pelas diferentes linhas de pobreza. E essa é uma escolha arbitrária. O Fome Zero tomou como referência um valor muito semelhante àquele utilizado pelo Banco Mundial: R$ 71,53 por pessoa (base setembro de 2001). Todavia estudos recentes do Ipea (julho de 2002) mostram que mesmo famílias que ganham até cinco salários mínimos exibem um balanço calórico negativo em todas as regiões metropolitanas brasileiras, exceto Curitiba.
Num país que figura como um dos quatro maiores exportadores de alimentos do mundo, o retrato da desnutrição muitas vezes é esmaecido pela abundância da oferta. Uma forma de desembaçá-lo são as pesquisas antropométricas. A última avaliação parcial feita por esse método -caro e complicado- remonta à década de 80. Vale dizer, porém, que, mesmo rastreando toda a população, nada garante que indivíduos com relações antropométricas aparentemente normais disponham do aporte nutricional adequado. Anemia e avitaminose, por exemplo, não são detectáveis por critérios de peso e altura.
Por tudo isso, o Fome Zero incluiu desde o seu início um aposto referencial ainda ignorado por muitos de seus críticos. Trata-se de um programa de segurança alimentar para o Brasil. Não é um explicativo ornamental. Tal conceito ajuda a entender o foco e a amplitude de sua ação. A segurança alimentar de um indivíduo ou de um país pressupõe quatro requisitos de acesso ao alimento: quantidade adequada, equilíbrio nutritivo, regularidade de oferta e dignidade na forma de obtê-lo. Alguns países já incluem requisitos adicionais de soberania e sustentabilidade na produção da comida -o que remete a exigências de autonomia e independência econômica, bem como preservação da cultura e do meio ambiente.
Portanto não se trata de tema passível de ligeireza política ou descarte acadêmico. O conceito de segurança alimentar reafirma o círculo vicioso que conecta a pobreza e a fome. Torna difícil definir relações de causalidade unilateral entre eles, mas comprova que o combate à fome é um atalho importante para sacudir os pilares da miséria.
O Fome Zero é um guarda-chuva de iniciativas sintonizado com essa lógica. Abrange cerca de 60 ações, das emergenciais, como o cartão-alimentação e o mutirão em curso, às estruturais, como a intensificação da reforma agrária e o fomento à agricultura familiar. As políticas e os programas envolvidos no Fome Zero têm como objetivo dar um tratamento universal à questão da segurança alimentar. Embutem, é verdade, uma cota de urgência, como indicam as experiências-piloto nos municípios de Guaribas e Acauã. Mesmo neste caso, porém, é apenas o primeiro o passo. Progressivamente ele será seguido de outros, de fôlego ampliado, cuja meta é gerar oportunidades de renda e emprego em dinâmicas locais sustentáveis.
Erra, portanto, quem acredita que a questão alimentar no Brasil é um apêndice de nossa dívida social. O país não tem legiões de famélicos, mas quase um terço de sua gente convive com o gosto amargo da insegurança alimentar. Reverter esse quadro é incompatível com políticas que focam o "atendimento" a bolsões de miséria cirurgicamente delimitados. Ter trazido à tona a centralidade desse desafio -e as dinâmicas que ele irradia- já foi uma conquista importante do Fome Zero. Trata-se, enfim, de questionar estruturas que deslocam cerca de 50 milhões de brasileiros para fora da cidadania.
Além de arejar conceitos e cadastros, porém, o importante agora é arregaçar as mangas para acelerar a implantação do programa. O debate crítico é um aliado nesse processo. Mas um país rico como o nosso tem obrigação de mostrar que está unido em torno dessa batalha.

Walter Belik, 46, é professor livre-docente do Instituto de Economia da Unicamp e um dos idealizadores do Projeto Fome Zero.


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