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São Paulo, quinta-feira, 10 de abril de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

A intenção do voto

RUY MARTINS ALTENFELDER SILVA

As tristes cenas da guerra no Iraque poderiam não estar ocorrendo, caso tivesse sido outro o resultado das polêmicas eleições de novembro de 2000, que levaram George W. Bush à Casa Branca. Independentemente do acerto ou erro da apuração no Estado da Flórida, a verdade é que o atual presidente dos Estados Unidos foi eleito com menor número de votos populares do que seu adversário, fenômeno ocorrido pela terceira vez na história do complexo processo eleitoral do país, o que suscitou, na época, o seu questionamento pela imprensa e opinião pública.
O episódio evidencia um aspecto fundamental: a democracia será mais avançada e próxima do ideal à medida que a legislação garantir a prevalência prática, no Executivo e no Legislativo, da intenção explícita do voto soberano do eleitor. A partícula condicional "se" é sempre questionável na análise histórica. Porém é inquestionável o fato de que o processo eleitoral norte-americano, à revelia do desejo expresso pelo voto da maioria da população, substituiu uma política externa mais diplomática e condescendente por uma dura doutrina unilateral, manifestada não só na presente guerra, como na renúncia dos Estados Unidos ao Tratado de Kyoto, ao acordo de defesa antibalística e até mesmo ao arbítrio de organismos multilaterais, como a ONU.
Sem entrar no mérito da legitimidade ou não da chamada "doutrina Bush", o exemplo acima é importante para o Brasil neste momento em que a reforma política -ao lado da previdenciária, tributária e trabalhista- é reclamada pela sociedade e se inclui no calendário de intenções do governo. E o arcabouço político nacional tem falhas que possibilitam -muito mais do que no modelo das eleições presidenciais norte-americanas- a frustração prática da intenção manifestada pelo voto direto.


O arcabouço político nacional tem falhas que possibilitam a frustração prática da intenção manifestada pelo voto


Nesse sentido, são três os equívocos a serem reparados. O primeiro é relativo à fidelidade partidária, em especial nas eleições proporcionais para as Câmaras Municipais, Assembléias Legislativas e a Câmara dos Deputados. O parlamentar eleito por uma legenda não deveria poder trocá-la antes de concluída a legislatura. Afinal, deve-se partir da lógica de que a eleição é proporcional à votação global dos partidos, aos quais pertencem os mandatos e aos quais o político filiado deve coerência à plataforma ideológica e programática "vendida" ao eleitorado.
O segundo equívoco diz respeito à proporcionalidade das bancadas estaduais na Câmara. É necessário que a representatividade de cada unidade da Federação seja mais compatível com seu número de eleitores, para que não se atribuam pesos diferentes a cidadãos de distintos Estados. Este fator também pode levar a Câmara e o Congresso Nacional a votarem contra o desejo da maioria dos brasileiros.
O terceiro equívoco capaz de distorcer a intenção explícita manifestada no voto é relativo aos suplentes dos senadores. O fato de não receberem o voto direto acaba resultando na investidura de senadores com pouca visibilidade e sem densidade eleitoral. Nenhum demérito, mas a verdade é que, por estranha coincidência, os suplentes dos candidatos ao Senado são sempre, com raríssimas exceções, ilustres desconhecidos do eleitorado. Independentemente disso, o correto, sob o ponto de vista da ética, da filosofia democrática e do bom senso, seria que os suplentes fossem, pela ordem, os mais votados depois do titular.
Esta simples modificação da lei corrigiria uma das mais graves distorções do arcabouço legal que rege o sistema político brasileiro. Além de tornar prevalente o desejo expresso pelo eleitor e de fazer justiça a candidatos muito bem votados, embora classificados em segundo ou terceiro lugar, evitaria outro vício corriqueiro no país: a nomeação de senadores para cargos no Executivo.
A partir do momento em que os suplentes na escala sucessória pertencerem a partido adversário do ocupante do Poder Executivo, prevalecerá a melhor relação custo-benefício, em termos políticos, de deter uma cadeira no Senado. Ainda no tocante a esta Casa, a reforma deve pelo menos reavaliar a duração do mandato de oito anos, que não se justifica em termos lógicos.
Permitir que o desejo do voto se expresse de maneira plena no Legislativo é fundamental para o avanço da democracia brasileira. O Congresso tem atribuições fundamentais, não só na elaboração e votação de todas as leis nacionais, como em decisões capazes de mudar radicalmente a vida do país.
O parágrafo II do artigo 49 da Constituição é emblemático no sentido de ilustrar a importância do Legislativo e de os parlamentares agirem de forma coerente com a intenção manifestada no voto dos cidadãos, conferindo competência exclusiva ao Congresso Nacional para autorizar o presidente da República a declarar guerra.

Ruy Martins Altenfelder Silva, 63, advogado, é presidente do Instituto Roberto Simonsen. Foi secretário da Ciência, Tecnologia, Desenvolvimento Econômico e Turismo do Estado de São Paulo (governo Geraldo Alckmin).


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