São Paulo, sábado, 10 de maio de 2008

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

FREDERICO VASCONCELOS

A invasão das câmeras

A EQUIPE DE TV chegou à casa de Agostinho dos Santos antes que a família soubesse da morte do cantor, vítima do desastre aéreo no aeroporto de Orly, em Paris, em 1973. Diante da câmera, a filha cantarolou sucessos do pai, antes de a repórter lhe transmitir a notícia e gravar o seu desespero. Um abuso indesculpável.
Anos depois, a televisão estimularia a disputa de audiência no período da tarde com programas do tipo "mundo cão". Repórteres pegavam carona em viaturas policiais e era comum a polícia chutar a porta do barraco e, a câmera de TV, cúmplice, acompanhar a invasão.
Nessa época, os grandes jornais paulistas mantinham certa "assepsia": a violência e o crime eram reservados aos chamados jornais populares. Demorou para que a imprensa de São Paulo, ao contrário da carioca, estampasse nas primeiras páginas dramas diários da população, dos problemas com transporte às chacinas. A violência disseminada (ou o apelo ao leitor) eliminou essas diferenças.
Um diálogo registrado no livro "Mídia e Violência" confirma como estamos distantes de certo tipo de reportagem policial: "Eu peguei o tempo em que o policial batia no preso e o repórter não falava nada", comenta um jornalista. Outro, mais velho, replica: "E eu peguei o tempo em que o repórter batia no preso". O livro, publicado pela Universidade Cândido Mendes, concluiu que a cobertura melhorou, mas ainda tem muito a avançar.
Os veículos de comunicação estão mais cautelosos depois da Escola Base -que virou um "carimbo", usado por suspeitos na Justiça para tentar desqualificar apurações jornalísticas. Mas o "Caso Isabella" pôs novamente à prova os limites entre o interesse público e o sensacionalismo. Não tenho dúvidas de que houve excessos.
Entre um caso e outro, a tecnologia permitiu um jornalismo mais "invasivo" -para o bem e para o mal. Denúncias a partir de filmagens com câmera oculta geraram escândalos como o do mensalão.
Pessoas comuns, com câmeras portáteis, documentaram violências policiais como a da Favela Naval. O portador de celular com câmera virou repórter na internet.
Num outro plano, analisando-se a partir do cidadão, as primeiras câmeras instaladas em áreas públicas, locais de trabalho e prédios residenciais despertaram o sentimento de privacidade violada. Com o avanço da criminalidade, esse aparato invasor tornou-se útil equipamento de segurança para inibir ou comprovar agressões, um recurso para solucionar crimes.
Hoje, desconfio que os leitores assustados com a enxurrada de notícias sobre violência, e desprotegidos diante dos limites da ação preventiva da polícia, devem sentir certo alívio ao ler o aviso bobo: "Sorria, você está sendo filmado!".


FREDERICO VASCONCELOS é repórter especial.


Texto Anterior: Rio de Janeiro - Ruy Castro: Psicanálise de galinheiro
Próximo Texto: Frases

Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.