São Paulo, sábado, 10 de maio de 2008

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TENDÊNCIAS/DEBATES

É correta a proibição da Marcha da Maconha?

NÃO

Antes de tudo, a liberdade

ROBERTO DELMANTO

"Homens e mulheres são livres apenas quando agem" (Hannah Arendt)

AS DECISÕES dos Tribunais de Justiça de São Paulo e do Rio de Janeiro que, atendendo a pedido do Ministério Público, proibiram a marcha pela descriminalização do uso da maconha, ou seja, para que tal conduta deixe de ser considerada criminosa, não me pareceram, com o devido respeito, as mais acertadas.
O Brasil, como um moderno Estado democrático de Direito, tem uma das Constituições mais avançadas do mundo no que diz respeito aos direitos humanos, motivo de orgulho para todos nós. A Magna Carta garante o direito à livre "manifestação do pensamento" (CF, art. 5º, IV) e à livre "locomoção no território nacional em tempo de paz" (CF, art. 5º, XV) e diz que "todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público, independentemente de autorização" (CF, art. 5º, XVI).
Essas mesmas garantias constam de dois importantes tratados internacionais por nosso país assinados: a Convenção Americana de Direitos Humanos (arts.13, I, e 15) e o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (arts. 19, 2, e 21).
Elas representam conquistas da civilização que demoraram séculos para se consolidar e constituem sempre os alvos preferidos das ditaduras, tanto de direita quanto de esquerda.
Nosso Código Penal, por sua vez, lista entre os delitos contra a paz pública a "incitação ao crime" (art. 286) e a "apologia de crime ou criminoso" (art. 287), ambos punidos com detenção de três a seis meses ou multa.
O verbo "incitar" tem a significação de açular, excitar, provocar. Pune-se o comportamento de quem incita a prática de crime. Portanto, deve tratar-se de fato expressamente previsto em lei como tal, não se enquadrando nessa figura o incitamento para praticar contravenção penal (infração menos grave que o crime) ou ato imoral.
Já fazer "apologia" é louvar, elogiar, enaltecer, exaltar fato criminoso ou autor de crime, não sendo punível a mera opinião.
Ora, uma coisa é incitar ou louvar o uso da maconha (que continua a ser crime, embora sancionado com penas não privativas de liberdade); outra, defender a idéia ou a tese de que seu uso não mais seja considerado crime.
O que o direito pune, evidentemente, é o abuso no exercício da liberdade de manifestação de pensamento. Logo, não haverá ilicitude na conduta de quem, no exercício legítimo dessa liberdade, propugnar pela descriminalização do aborto, da eutanásia ou do porte de droga para uso próprio.
A discussão a respeito desse último tema é não só legítima como absolutamente necessária.
O combate ao tráfico de drogas, no Brasil e no mundo, vem sendo perdido porque é equivocado. O tráfico e seu consumo se afiguram muito mais um problema social do que policial.
Precisamos investir em educação, discutindo abertamente o problema nas escolas desde cedo: a ilusão que as drogas representam e o terrível mal que acarretam em curto prazo.
Acho que, numa primeira fase, deveríamos descriminalizar as drogas consideradas mais leves e aumentar o apoio aos dependentes químicos, incentivando-os e ajudando-os a abandonar o vício. Como na Inglaterra, receberiam uma espécie de cardeneta, e a droga, paulatinamente diminuída sob orientação médica, seria fornecida pelo Estado e nela anotada. Assim, o tráfico e a corrupção que o envolve diminuiriam consideravelmente.
Devemos, portanto, ter coragem e liberdade de discutir abertamente o tema, e não receio de fazê-lo, proibindo manifestações a favor ou contra. A coragem, disse Aristóteles, "é a primeira das qualidades humanas porque é a que garante as outras".
E, quanto ao direito de viver e se manifestar livremente, o escritor Victor Hugo, ainda menino, ouviu de um coronel francês, opositor de Napoleão, uma frase da qual jamais se esqueceria: "Lembre-se sempre, meu filho, acima de tudo, a liberdade".


ROBERTO DELMANTO, 64, é advogado criminalista, autor de "Código Penal Comentado", entre outras obras. Foi membro do Conselho de Política Criminal e Penitenciária do Estado de São Paulo e do Ilanud (Instituto Latino-Americano das Nações Unidas para Prevenção do Delito e Tratamento do Delinqüente).

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