São Paulo, Segunda-feira, 10 de Maio de 1999
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Muletas para o ensino pago


A cobrança de mensalidades serviria para elitizar ainda mais o já restrito acesso à universidade pública


RICARDO CAPPELLI
e ANDERSON MARQUES


Ressurge a discussão sobre a cobrança de mensalidades nas universidades públicas, sob o falso argumento da democratização do acesso ao ensino superior. Artigos e reportagens criticam a gratuidade, vista como paradigma que impede a universalização do acesso.
Mais que um paradigma, a gratuidade é necessidade objetiva num país marcado pelo analfabetismo e cujos indicadores sociais estão entre os piores do mundo. O Brasil é o quarto colocado em desemprego no planeta, e as taxas internas também são alarmantes. Em Salvador, chegam a 24% da População Economicamente Ativa; em São Paulo, estão em 18,5%; em Recife, passaram de 20%. A renda "per capita" do país deve cair 4,8% neste ano, voltando ao nível de 1980. A mortalidade infantil cresceu em 1998; o salário-maternidade virou fonte de renda para famílias miseráveis do Nordeste; e, em 2000, o país terá 20 milhões de crianças desnutridas (12,5% da população).
O fortalecimento da educação em todos os níveis está entre as medidas imprescindíveis para a elevação das condições de vida de nosso povo. Nesse aspecto, é preciso entender a educação como um sistema e evitar focalizações que distorçam a realidade.
A universidade pública responde por quase 90% da produção científica e tecnológica do Brasil. Em muitos Estados, ela é o principal centro produtor e reprodutor de conhecimento, colaborando para diminuir as desigualdades regionais. Na maioria dos casos, o município em que a instituição está localizada obtém lucros com a arrecadação extra e ajuda a incrementar o desenvolvimento regional. Estudo do professor da Unesp José Munari Bovo, publicado por esta Folha, indica que as cidades que sediam unidades dessa universidade pública paulista obtêm, em média, 30% a mais no seu Orçamento, como reflexo da movimentação econômica por alunos, professores e funcionários.
O investimento financeiro do Estado nas universidades também é devolvido na forma de serviços, os quais, dia após dia, o mesmo poder público se desincumbe de oferecer à população carente. A Unicamp, por exemplo, acolhe em seu Hospital de Clínicas quase todos os pacientes dos hospitais da região de Campinas (SP) que suspenderam seus convênios com o Sistema Único de Saúde. A manutenção da gratuidade garante a universidade como espaço democrático de troca de experiências e ponto de busca da elevação de nosso bem-estar social, de saídas para a crise.
Se há elitização em alguns cursos, ela resulta da falência do ensino médio público, abandonado ao longo de décadas por governos irresponsáveis e comprometidos politicamente com o ensino privado. A cobrança de mensalidades, em vez de resolver o problema da democratização do acesso, que hoje alguns já julgam restrito, serviria para elitizá-lo ainda mais. A gratuidade seletiva, em que todos pagam e o governo dá bolsas aos que não podem pagar, funciona ao sabor dos ventos políticos. As bolsas podem ser cortadas na hora em que os mandatários acharem que é preciso reduzir gastos -vide a situação atual do crédito educativo.
A democratização do acesso não passa pela cobrança de mensalidades nas instituições públicas ou pelo aporte de recursos estatais para financiar um ensino privado de qualidade quase sempre duvidosa, no qual -com brilhantes exceções- prevalece a diretriz mercadológica.
Para democratizar o ensino superior, é preciso fortalecer não só a escola gratuita, mas principalmente a pública e de boa qualidade. Para isso sugerimos, há um bom tempo, algumas medidas.
A primeira delas é melhorar o nível do ensino médio público, para que os alunos egressos dessa rede possam ter as mesmas condições de disputar vagas com os alunos vindos da rede privada.
A segunda é aumentar significativamente as vagas nas universidades públicas, para que todos tenham acesso aos bancos universitários independentemente de condição socioeconômica -até para que a escola particular passe a ser verdadeiramente uma opção, não uma imposição, como é hoje.
Por fim, é urgente que o governo federal retome programas de assistência estudantil, para que a necessidade de sobrevivência não obrigue o aluno a abandonar os estudos em busca de um emprego cada vez mais raro.
A idéia de cobrança nas públicas para financiar o setor privado, portanto, só pode ser entendida como a busca de uma muleta para quem investiu em educação particular olhando estatísticas que apontavam para uma grande explosão da demanda por ensino superior no país, mas se esqueceu do crescente abismo social e da falta de perspectivas que afeta a população, particularmente a juventude, impedindo que o aluno (ou sua família) possa arcar com os altos custos das mensalidades.


Ricardo Cappelli, 27, é presidente da UNE (União Nacional dos Estudantes) e aluno de informática da Universidade Estácio de Sá (RJ).

Anderson Marques, 26, é presidente da União Estadual dos Estudantes de São Paulo.




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