São Paulo, quinta-feira, 10 de junho de 2004

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SÉRGIO MALBERGIER

Democracia neles

Um dos grandes objetivos dos anfitriões americanos da cúpula do G8 deste ano era aprovar um documento promovendo a democracia no Oriente Médio.
Quando um primeiro esboço do plano vazou, a grita foi enorme entre as ditaduras árabes. Reclamaram que não queriam planos impostos do exterior e que não se pode falar de democracia na região sem falar do conflito israelo-palestino. Faltou explicar como o que acontece na Palestina impede um cidadão árabe de sair de sua casa e depositar seu voto na urna.
No final, os países árabes mais importantes -Arábia Saudita e Egito- esnobaram a cúpula em Sea Island, e o documento anunciado ontem não deve ter grande valor prático.
A democracia é estranha ao mundo árabe. Não há entre os 22 membros da Liga Árabe nenhum país onde vigore o Estado de Direito. Relatórios sobre o desenvolvimento árabe produzidos por especialistas árabes para a ONU em 2002 e em 2003 chegaram à mesma conclusão: que os países árabes perderam o trem da abertura política após o fim da Guerra Fria, que levou a democracia a regiões como a América Latina e a Ásia.
E estão perdendo também o trem da era da informação. Os árabes, segundo a ONU, ficam atrás de outras regiões em termos de disseminação do conhecimento. A leitura de livros é relativamente limitada, a educação dita submissão em lugar de pensamento crítico e a opressão às mulheres é generalizada. O relatório culpa a falta de "canais pacíficos e efetivos de combate às injustiças" pela pressão que leva os grupos políticos radicais (como os extremistas islâmicos) a promover a mudança por meio da violência.
O problema (grave) está diagnosticado. E pelos próprios árabes. É importante não só para os oprimidos árabes, mas para o mundo todo, resolvê-lo, já que o terror islâmico tem entre suas causas principais a falta de democracia. Mesmo para nós, distantes brasileiros, já que o preço do petróleo tem ligação direta com a instabilidade política árabe.
Os EUA fizeram quase tudo errado no Iraque. Com isso, o que parte de Washington em relação ao país que ocupa é logo descartado.
Mas numa coisa os neoconservadores por trás da aventura iraquiana têm razão: se algum tipo de sistema democrático vingar em Bagdá, ele terá enorme poder de disseminação, dada a centralidade do Iraque em relação ao mundo árabe. Portanto, mais do que a planos grandiosos para a região, é a isso que os EUA devem se ater.
E que os relativistas culturais não se esqueçam de que a democracia não é estranha ao mundo islâmico, como atestam centenas de milhões de indonésios, turcos e indianos.
E que os ditadores árabes não reclamem da introdução de "costumes ocidentais" em seus países. Como lembra o decano arabista inglês Bernard Lewis, foi a introdução do modernismo ocidental no Oriente Médio no início do século 20 que propiciou as condições para o surgimento dos Estados fortes e autocráticos. Foi pelas ferrovias recém-importadas que os governantes puderam enviar suas tropas para eliminar dissensões nos confins de seus reinos.


Sérgio Malbergier é editor de Mundo. Hoje, excepcionalmente, não é publicado o artigo de Otavio Frias Filho, que escreve às quintas-feiras nesta coluna.


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