|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
CARLOS HEITOR CONY
Ouvindo vozes
RIO DE JANEIRO - Em momentos de crise, costuma-se ouvir vozes. Em
1964, o general Mourão Filho, passando pela via Dutra, ouviu a voz de
Nossa Senhora de Aparecida pedindo-lhe que salvasse o Brasil do comunismo. Em 1961, naquela noite em
que Carlos Lacerda derrubou Jânio
Quadros, lá em Brasília, ao ir para o
hotel, ficou em transe "com aquelas
luzes, aquele cenário futurista" e sentiu, no peito, uma voz que exigia providências para as instituições.
Pulando para o Sinai, Moisés ouviu
do Senhor os mandamentos que nos
guiam. Maomé ouviu o arcanjo Gabriel, que lhe teria ditado pedaços inteiros do Alcorão.
Joana D'Arc ouviu vozes pedindo
que salvasse a França católica dos
protestantes ingleses -foi parar na
fogueira e na glória dos altares.
Olavo Bilac não chegou a ouvir vozes. Fez pior: ouviu estrelas. Outro
poeta, o bardo Drummond de Andrade, ouviu um anjo dizer: "Vai
Carlos, ser gauche na vida".
Tive um primo que ouviu vozes.
Era um bom sujeito, boníssimo para
falar a verdade. Depois de levar pau
em todos os exames, teve um momento de alumbramento. Lá em casa
havia uns bambuais, e foi nesses
bambuais, conspurcados pela lascívia precoce dos meninos, que ele viu
santa Terezinha do Menino Jesus.
A partir desse dia, continuou sendo
a cavalgadura que todos conhecíamos, mas passou a gozar de um halo
de santidade que o fez notável. A única tia milionária que possuíamos,
dona de várias padarias na Tijuca,
modificou às pressas seu testamento
(ela não tinha filhos) e tornou-o seu
herdeiro universal.
O que mostra que a burrice dele
não era tão grande assim -nunca
me passou pela cabeça ouvir a santa
nos bambuais. Ouvi voz de prisão,
seis ao todo. E ouço Lula prometer
maravilhas todos os dias.
Texto Anterior: Brasília - Valdo Cruz: Causa própria Próximo Texto: Sérgio Malbergier: Democracia neles Índice
|