São Paulo, quinta-feira, 10 de junho de 2004

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CARLOS HEITOR CONY

Ouvindo vozes

RIO DE JANEIRO - Em momentos de crise, costuma-se ouvir vozes. Em 1964, o general Mourão Filho, passando pela via Dutra, ouviu a voz de Nossa Senhora de Aparecida pedindo-lhe que salvasse o Brasil do comunismo. Em 1961, naquela noite em que Carlos Lacerda derrubou Jânio Quadros, lá em Brasília, ao ir para o hotel, ficou em transe "com aquelas luzes, aquele cenário futurista" e sentiu, no peito, uma voz que exigia providências para as instituições.
Pulando para o Sinai, Moisés ouviu do Senhor os mandamentos que nos guiam. Maomé ouviu o arcanjo Gabriel, que lhe teria ditado pedaços inteiros do Alcorão.
Joana D'Arc ouviu vozes pedindo que salvasse a França católica dos protestantes ingleses -foi parar na fogueira e na glória dos altares.
Olavo Bilac não chegou a ouvir vozes. Fez pior: ouviu estrelas. Outro poeta, o bardo Drummond de Andrade, ouviu um anjo dizer: "Vai Carlos, ser gauche na vida".
Tive um primo que ouviu vozes. Era um bom sujeito, boníssimo para falar a verdade. Depois de levar pau em todos os exames, teve um momento de alumbramento. Lá em casa havia uns bambuais, e foi nesses bambuais, conspurcados pela lascívia precoce dos meninos, que ele viu santa Terezinha do Menino Jesus.
A partir desse dia, continuou sendo a cavalgadura que todos conhecíamos, mas passou a gozar de um halo de santidade que o fez notável. A única tia milionária que possuíamos, dona de várias padarias na Tijuca, modificou às pressas seu testamento (ela não tinha filhos) e tornou-o seu herdeiro universal.
O que mostra que a burrice dele não era tão grande assim -nunca me passou pela cabeça ouvir a santa nos bambuais. Ouvi voz de prisão, seis ao todo. E ouço Lula prometer maravilhas todos os dias.


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