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Faz parte
Considerações de Lula sobre Chávez são típicas de seu estilo evasivo e dos embaraços da esquerda diante da democracia
FORAM INFELIZES , para dizer o mínimo, as frases
com que o presidente
Luiz Inácio Lula da Silva
tentou justificar o mais recente
passo de Hugo Chávez na construção de um regime autoritário
na Venezuela. Ao decidir pelo fechamento de uma emissora de
TV oposicionista, o líder bolivariano estaria exercendo apenas,
segundo o raciocínio de Lula,
uma prerrogativa inerente ao
seu cargo presidencial.
"Não dá para ideologizar essa
questão da televisão", disse Lula,
em entrevista publicada na sexta-feira nesta Folha. Feitas na
Alemanha, suas declarações pareciam vir de alguma galáxia distante. Contra ou a favor de Chávez, nenhum observador ignora
que sua decisão de não renovar a
concessão da RCTV é ideológica
do princípio ao fim.
Para os chavistas, a emissora
merece ser fechada pelo apoio
que prestou ao frustrado golpe
oposicionista de 2002. Repudiam, com razão, aquela aventura autoritária e truculenta. Fazem-no, contudo, para que seu
líder prossiga na própria aventura, no próprio autoritarismo e na
própria truculência, sem nenhuma TV a criticá-lo.
"O mesmo Estado que dá uma
concessão", filosofa Lula, "é o
Estado que pode não dar a concessão." Na contemplativa serenidade da frase, algo que lembra
um fatalismo teológico ("Deus
dá e Deus tira"), oculta-se a essência do caso. Na verdade, o
mesmo Chávez que fecha a TV
de oposição é o Chávez que abre
mais uma TV a seu favor.
Para Lula, entretanto, seriam
dois atos igualmente democráticos. No Brasil, ressaltou, a concessão de canais de TV "não é
uma decisão unilateral do presidente". Na Venezuela é. Lula
conclui, um tanto desenxabido:
"Faz parte da democracia deles".
Que democracia? Pode-se dizer, sem dúvida, que o poder presidencial de tomar decisões unilaterais sobre meios de comunicação faz parte, vá lá, "da Constituição deles", feita sob medida
para dar poder a Hugo Chávez.
Mas não "faz parte" de nenhuma
democracia digna desse nome.
É recorrente na esquerda o hábito de particularizar, conforme
características locais, a acepção
de um conceito universal como a
democracia. Desse modo se falava, em outros tempos, da "democracia soviética" e, ainda hoje, de
uma "democracia cubana", no
rumo da qual parece seguir firmemente o "socialismo do século 21" defendido por Chávez.
Não cabe, por certo, ao presidente do Brasil imiscuir-se nos
assuntos internos de outra nação. O princípio da não-ingerência foi agora lembrado por Lula,
que entretanto não o aplicara
em circunstâncias mais amenas.
Apoiou a candidatura de Evo
Morales, na Bolívia, e do mesmo
Chávez, na mesma Venezuela.
E é o mesmo Lula, afinal, quem
corretamente defende o Senado
brasileiro, quando este é atacado
por Chávez, e quem defende
Chávez, quando este ataca a democracia. "Faz parte", digamos,
do estilo dele, sem dúvida mais
macunaímico do que bolivariano. O que, comparativamente, já
é alguma coisa.
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