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TENDÊNCIAS/DEBATES
As Forças Armadas na América Latina
BORIS FAUSTO
O golpismo tradicional perdeu força e sentido na região, mas a escalada autoritária, por outras vias, continua sendo ameaçadora
O PANORAMA POLÍTICO da
América Latina comporta riscos e problemas, mas está longe de ser um desastre. Basta lembrar
o foco principal de interesse do ano
em curso: as eleições no Chile, no Peru, no México, na Colômbia, no Brasil
e em outros países. Fala-se da significação das candidaturas, do papel relevante ou secundário dos partidos, dos
índices de comparecimento, das campanhas acirradas e às vezes sujas.
Em contraposição, não há praticamente quem fale na ameaça de golpes
militares. É óbvio que isso não ocorre
por acaso. Tomo, como exemplo, três
países significativos: Brasil, Argentina e Chile. Neles, há pouco mais de 30
anos, estavam no poder ditaduras militares cujas diferenças podiam ser
medidas pelo grau maior ou menor de
ferocidade. De lá para cá, em meio às
vicissitudes, regimes democráticos
foram instituídos e mantiveram-se ao
longo do tempo.
Ressalvo que estou falando da "democracia formal" (eleições, liberdade
de expressão, rotatividade no poder,
separação de Poderes), cujo valor tende a ser esquecido por quem despreza
as liberdades ou as considera um dado natural, como o ar que se respira.
Ao avanço democrático, correspondeu o recuo das Forças Armadas para
sua área específica de atuação. A
emergência das ditaduras, a partir
dos anos 60 do século passado, teve
muito a ver com o quadro internacional daquele período, caracterizado
pela Guerra Fria.
A ameaça de revoluções socialistas
ou antiimperialistas, na esteira da Revolução Cubana, levou o governo
americano a apoiar golpes militares,
que serviam a seus interesses estratégicos. Mas os golpes foram também
conseqüência das condições internas
de cada país, em cujo caldo fermentaram as Forças Armadas, associadas a
elites políticas e empresariais, em nome da hierarquia e da ordem.
Hoje, as preocupações são outras e
em nenhum dos países mencionados
há sintomas de que a corporação militar pretenda voltar à arena política.
No caso brasileiro, alguns passos institucionais importantes foram dados,
como a criação do Ministério da Defesa, mesmo que seu papel até aqui tenha sido obscurecido. Ao mesmo
tempo, vozes da sociedade civil organizada têm contribuído para cortar
pela raiz ensaios de medidas autoritárias esboçados nos últimos anos.
Entretanto, esse quadro não nos induz ao otimismo sem qualificações
porque há circunstâncias negativas
em jogo, nada desprezíveis. Ainda tomando o exemplo brasileiro, assinalo
o descrédito gradativo do regime democrático, resultante da desmoralização de partidos e de muitos políticos; o funcionamento precário das
instituições; a decepção com os frutos
sociais da democracia, neste último
caso produto da ilusão de que a democracia daria de tudo a todos.
O descrédito tem sido responsável
pela emergência de personagens neopopulistas, não raro de origem militar, cuja inclinação autoritária é evidente. É o caso do coronel Humala,
que quase chegou ao poder no Peru,
de Evo Morales na Bolívia, com sua
especificidade étnica e, principalmente, de Hugo Chávez.
Na presidência da Venezuela, este
encarna uma forma aguda de erosão
da democracia, por caminho diverso
dos golpes militares.
Eleito segundo as regras democráticas, o presidente venezuelano vem
impondo, passo a passo, um regime
autoritário, de que são exemplos as
restrições à mídia -a televisão foi alvo recente de suas atitudes intimidadoras -, a intervenção no Poder Judiciário, a militarização da massa de
aderentes, a imposição de um currículo escolar baseado nos princípios
da chamada revolução bolivariana.
Chávez sustenta também a necessidade de sua sucessiva reeleição, preparando o clima para farsas eleitorais
plebiscitárias. É cedo para se dizer
quão longe ele irá. Há sintomas de
que sua influência na América Latina
está declinando, por força da malsucedida tentativa de intrometer-se em
assuntos internos de outros países,
como se viu no decorrer das campanhas eleitorais do Peru e do México.
Ao mesmo tempo, a entrada da Venezuela no cambaleante Mercosul,
bem-vinda em outras circunstâncias,
tende a gerar conflitos entre parceiros, mais do que integração, dadas as
pretensões à liderança continental do
presidente venezuelano.
Em resumo, o golpismo tradicional
perdeu força e sentido, alguns ventos
benignos sopram na América Latina,
mas a escalada autoritária, por outras
vias, continua sendo ameaçadora.
Esse é o preço que se paga pela perversão dos princípios democráticos e
a persistência das gritantes iniqüidades sociais.
BORIS FAUSTO, historiador, é presidente do Conselho
Acadêmico do Gacint (Grupo de Conjuntura Internacional
da USP). É autor de, entre outras obras, "A Revolução de
30" (Companhia das Letras).
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