São Paulo, domingo, 10 de setembro de 2006

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Lula: um crime contra o usuário de drogas

WALTER FANGANIELLO MAIEROVITCH


Ao tipificar a posse de droga para uso como crime, cai por terra o discurso enganoso da pena alternativa, sem prisão, feito pelo governo Lula


O PRESIDENTE Lula, no final de agosto, sancionou uma nova lei para enfrentar o fenômeno das drogas proibidas. Ela substituirá a colcha de retalhos tecida no governo FHC. À época, FHC solicitou a aprovação de um projeto de lei sobre drogas ilícitas que tramitava há mais de dez anos e que considerou, na última versão, ótimo para o país.
Em regime de urgência, o Congresso atendeu o solicitado por FHC, com torcida favorável do czar antidrogas da Casa Branca, general Barry McCaffrey, um republicano em governo democrata. Quando da sanção, FHC percebeu o monstro. Voltou atrás e vetou cerca de 70%. Parte do que sobrou, e referentemente ao rito processual, entupiu os tribunais com argüições de nulidade.
Com os vetos, continuou, em maior parte, a vigorar a lei nš 6.368/76, feita para acolher o estabelecido na Convenção de Nova York, de 1961, ainda em vigor, e que incorporou o padrão norte-americano.
A lei sancionada por Lula, que também pediu ao Congresso urgência na aprovação, mostra que o atual presidente, com relação ao usuário, deixou de cumprir a promessa feita em 1998, quando subscreveu carta enviada ao secretário-geral das Nações Unidas, Kofi Annan, por ocasião de uma assembléia especial sobre drogas.
Na carta a Annan, pediam-se mudanças nas convenções da ONU, todas marcadas pela militarização no combate às drogas ("war on drugs") e pela criminalização do usuário. Sem registro de memória, Lula acaba de criminalizar o portador de droga para consumo pessoal. E resultará em cadeia a desobediência a sanção judicial restritiva de direitos, como, por exemplo, submeter-se a tratamento terapêutico obrigatório.
Para Lula, a repetir FHC, todo portador de droga para uso próprio surpreendido pela polícia é criminoso. Mais ainda, Lula legitimou a chamada justiça terapêutica. Esta, difundida na América Latina pelo governo Bush com verbas substanciais, até para a ida de juízes e promotores aos EUA.
Pela doutrina Bush, todo usuário primário deve ser tratado por ser um doente. Ao reincidente e àquele que abandona o tratamento, a solução é a prisão. Como se sabe, a justiça terapêutica é reprovada pela maior parte da comunidade científica acadêmica internacional. A tendência moderna, progressista e de ótimos resultados na redução da demanda, considera o porte para uso próprio como infração meramente administrativa. Portanto, fora do sistema processual criminal. Assim, só vale como problema de saúde pública a ser contrastado pelo Executivo, ou seja, pelo Estado-administração, e não pelo Estado-juiz.
Ao tipificar a posse de droga para uso como crime, cai por terra o discurso enganoso da pena alternativa, sem prisão, feito pelo governo Lula. Quando se opta pela criminalização, o sistema legal sanciona com encarceramento a desobediência a uma sanção judicial restritiva de direitos.
Portanto, é falsa a afirmação de que o usuário, dado como criminoso por Lula, nunca vai para a cadeia. Caso fosse colocada como infração administrativa, de atribuição sancionatória reservada ao Executivo, o usuário não iria parar na prisão: aquele que excede a pontuação da lei de trânsito e não freqüenta a escola ressocializante jamais vai para a cadeia.
Há três anos, observou George Esteverart, presidente do Observatório de Drogas da União Européia: "A atitude atual da Europa é endurecer com o traficante, e não perseguir o usuário como sendo um criminoso".
O que Lula e o projeto petista fizeram foi avançar apenas naquilo que é unanimidade até nas progressistas Holanda e Suíça: reprimir pesadamente o traficante e punir com prisão o capitalista do tráfico. Essa salutar tendência decorre do fato de a indústria da droga movimentar US$ 400 bilhões anualmente, dentro do sistema bancário internacional.
Sempre lembrando a carta entregue a Kofi Annan, o governo Lula e a nova lei sancionada pouco avançaram nas medidas sociossanitárias de redução de danos ao usuário e, conseqüentemente, de riscos à população.
Lula não quis progredir com relação ao usuário, nem mesmo lhe dar trato humanizado. Preferiu pregar-lhe o rótulo de criminoso.

WALTER FANGANIELLO MAIEROVITCH , 59, juiz aposentado do Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo, é presidente do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais Giovanne Falcone. Foi secretário nacional antidrogas da Presidência da República (1999-2000).


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