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São Paulo, segunda-feira, 10 de novembro de 2003

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BORIS FAUSTO

Choque cultural

As migrações em larga escala, sobretudo de muçulmanos para a Europa ocidental, têm gerado conflitos reveladores de um choque cultural que se concentra em atitudes, em gestos, no uso de vestimentas e em tos outros traços da vida cotidiana.
O caso recente de Adel Smith, que, na Itália, exigiu fosse retirado o crucifixo das salas de aula da escola onde estudam seus filhos não serve, entretanto, como exemplo generalizador. Mas, em sua ousadia radical, contraproducente para a comunidade muçulmana, é um signo de inquietação. Recordando, uma decisão judicial favorável a Smith provocou a revolta das mães, impedindo que o crucifixo fosse removido da escola, protestos em todo o país, e até o Papa condenou solenemente a decisão.
Smith é uma figura agressiva e, no mínimo, controvertida. Nascido no Egito, de pai italiano com origem longinquamente escocesa, e mãe egípcia, convertido ao Islã em meados dos anos 80, vem realizando há muito tempo campanhas contra a religião católica. Em época mais recente, provocou alarme, ao defender, num show televisivo, Bin Laden e os atentados do 11 de Setembro.
Mas, para que não se diga que a polêmica por ele levantada é insólita, recordo as sessões da Assembléia Legislativa de São Paulo, a que assisti das galerias, em 1947, quando se discutiu, ardorosamente, se cabia colocar uma imagem de Cristo no recinto da Casa. A oposição, aliás derrotada, não vinha de uma tendência religiosa, mas da nutrida bancada comunista, formada por alguns nomes ilustres, entre eles Caio Prado Jr.
Essa é uma história curiosa, mas excepcional, no Brasil. Aqui, no caso dos imigrantes, o choque cultural foi historicamente muito menor, o que não quer dizer que não tenham existido grupos estrangeiros dispostos a garantir sua autonomia no meio brasileiro, nem violências governamentais contra eles. Basta lembrar o caso das colônias alemãs do sul do país, durante a década de 30, e as medidas tomadas contra os chamados súditos do Eixo, no curso da Segunda Guerra Mundial.
Mas o quadro geral do processo migratório aponta para um amplo entendimento, que não se deve apenas à propalada índole generosa do povo brasileiro. No contexto dos últimos anos do século 19 e das primeiras décadas do século 20, a imigração em massa foi encarada como um fenômeno benéfico, na medida em que os imigrantes foram considerados elementos civilizatórios e úteis ao progresso nacional.
Eles, por sua vez, aqui chegaram com a disposição de ficar, fugindo às misérias (quem diria?) da velha Europa ou da Ásia. Certamente houve diferenças: os japoneses representaram a etnia que mais sonhou em regressar ao Japão e que quase nunca realizou esse objetivo; os judeus jamais pensaram nisso, pois não havia pátria para onde retornar, e, a partir da década de 30, surgiram os massacres nazistas.
A história da imigração no Brasil, descartadas as idealizações, é assim uma rara história de final feliz. Mesmo porque dela não resultou a assimilação, mas uma integração muito positiva de diferentes culturas.


Boris Fausto escreve às segundas-feiras nesta coluna.


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