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São Paulo, segunda-feira, 10 de novembro de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

A miopia dos interesses comerciais

CARLOS AUGUSTO MONTEIRO e PATRÍCIA CONSTANTE JAIME

Com espanto, lemos nesta Folha, em 15/10, artigo assinado pelo presidente da União da Agroindústria Canavieira de São Paulo, com graves acusações à Organização Mundial da Saúde ("A miopia dos organismos internacionais", pág. A3). O foco das acusações é o recém-editado relatório técnico nš 916 da OMS, denominado "Dieta, nutrição e a prevenção de doenças crônicas", em particular suas recomendações quanto à limitação da ingestão de açúcar a menos do que 10% do total de calorias da alimentação.
Segundo o articulista, esse relatório "presta um desserviço à ciência, à população dos países em desenvolvimento e à economia dos mesmos, com recomendações para a saúde mundial voltadas às necessidades de uma classe média dos países ricos, onde a obesidade e suas consequências tornaram-se preocupação de saúde pública". O articulista acrescenta ainda que a recomendação quanto à restrição do consumo de açúcar "perde completamente a seriedade quando confrontada com a situação de vários países da África, América Latina e Ásia, nos quais o açúcar é uma fonte acessível e barata de energia". Acusa também a pesquisa que deu origem ao relatório de "falta de bom senso, ao prescrever a mesma dieta (sic) para o obeso e para o subnutrido".


A frequência da obesidade no Brasil já é superior à observada em vários países desenvolvidos
Há tantos equívocos nos argumentos do dirigente da agroindústria canavieira, que uma resposta simples e curta é difícil. Em primeiro lugar, os relatórios técnicos da OMS são documentos da mais alta seriedade científica, elaborados por grupos consultores independentes e integrados por professores e especialistas dos melhores centros de pesquisa do mundo. No caso do relatório 916, sua autoria envolveu 30 consultores filiados a instituições acadêmicas sediadas nos EUA, Jamaica, Chile, Inglaterra, Holanda, Lituânia, África do Sul, Japão e China, entre outros países.
O processo que culminou com a elaboração do relatório envolveu a revisão acurada dos resultados de centenas de pesquisas científicas sobre a relação entre dieta, nutrição e doenças crônicas (incluindo, claro, os estudos sobre consumo de açúcar e risco de doenças crônicas), a produção prévia de dezenas de documentos básicos sobre o tema e um longo período de consulta pública pela internet, quando uma versão preliminar do relatório pôde ser debatida por todas as partes interessadas.
Destaque-se, ainda, que, com relação especificamente ao consumo de açúcar, o novo relatório da OMS apenas reforça (dadas novas e importantes evidências científicas) a necessidade de limitar o consumo desse alimento a menos de 10% das calorias, orientação que já estava presente em relatório técnico semelhante elaborado em 1990.
Em segundo lugar, a obesidade, uma das doenças crônicas associadas ao consumo excessivo de açúcar, não é um problema de saúde pública apenas entre as classes médias dos países ricos, como erradamente aponta o dirigente empresarial. A simples leitura da introdução do relatório criticado pelo dirigente lhe mostraria que, presentemente, a obesidade avança de modo mais rápido nos países em desenvolvimento do que nos países desenvolvidos e que, hoje, 4 em 5 mortes por doenças crônicas, a maioria delas relacionadas à obesidade, ocorrem no mundo em desenvolvimento.
Caso consultasse outro recente relatório da OMS ("Obesidade: prevenindo e manejando a epidemia global", de 2002), saberia também que a frequência da obesidade no Brasil já é superior à observada em vários países desenvolvidos e que, na região Sudeste do país, a frequência da obesidade feminina nos estratos de baixa renda é duas vezes superior à no estrato de alta renda. Caso ampliasse sua consulta a revistas científicas nacionais e internacionais, tomaria conhecimento de que a incidência de obesidade em crianças e adolescentes brasileiros aumentou mais de três vezes nas duas últimas décadas. Também saberia que o consumo de açúcar na forma de refrigerante, fator de risco comprovado para a obesidade infantil, aumentou mais de 50% nas áreas metropolitanas brasileiras na última década.
O fato de que o consumo médio de açúcar no Brasil excede em quase 50% os valores máximos recomendados pela OMS certamente já é do conhecimento do presidente da Unica.
Respondemos com uma pergunta à acusação de falta de seriedade da OMS por recomendar um mesmo limite máximo de consumo de açúcar para todos os países, incluindo países produtores em que o açúcar é uma fonte barata de energia: a quem falta seriedade?
Finalmente, as recomendações que constam do relatório da OMS não são prescrições médicas e, portanto, não se destinam especificamente a indivíduos obesos ou subnutridos, como sugerido pelo articulista. São recomendações feitas para populações e almejam prevenir doenças e propiciar condições ótimas de saúde a todos. Ainda assim, tanto obesos quanto subnutridos se beneficiam com o limite do consumo de açúcar a menos de 10% das calorias totais da alimentação.
Conforme sublinhado no relatório da OMS, a participação do açúcar na alimentação não deve ser limitada só por aumentar o risco de obesidade e das doenças crônicas associadas a essa condição (diabetes, doenças do coração e pulmonares, hipertensão, osteoartrite, certos tipos de câncer etc). Contendo essencialmente calorias vazias, o açúcar dilui a concentração da alimentação em todos os nutrientes essenciais (proteínas, carboidratos complexos, vitaminas e minerais) e, nessa medida, é um fator inquestionável de produção ou agravamento da subnutrição.
Quem é míope?


Carlos Augusto Monteiro, 55, médico, é professor titular do Departamento de Nutrição da Faculdade de Saúde Pública da USP. Patrícia Constante Jaime, 32, nutricionista, é professora doutora do Departamento de Nutrição da Faculdade de Saúde Pública da USP.




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