|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
MARCOS NOBRE
Quem derrubou?
"QUEDA" É UMA palavra
que liga a Revolução
Francesa de 1789 à revolução alemã de 1989. Mas a ligação
pode ser enganosa. A Bastilha caiu
porque foi tomada de assalto. No
caso do muro de Berlim, muitas explicações até hoje parecem dizer
que muros caem por si mesmos. A
grande encenação oficial de ontem
foi a da queda de dominós enfileirados. Como se o muro tivesse caído por força da gravidade.
Até hoje, o sentido e o significado
da Revolução Francesa são objeto
de controvérsia e de disputa. Mas,
já em 1789, era tido e havido como
certo que o sujeito da transformação era "o povo". A disputa, ontem
como hoje, é para determinar
quem é afinal "o povo".
No caso do 1989 alemão, há muito pouca clareza sobre a quem se
deve atribuir o fim das ditaduras
igualitaristas do Leste Europeu.
São muitos os candidatos. Mas a
grande maioria das explicações parece sempre querer dizer que as
transformações, de alguma forma,
vieram de cima.
Há quem as atribua às forças impessoais e sistêmicas, como o capitalismo, ou à ineficiência do planejamento soviético. Ou, ao contrário, há quem ache que foram lideranças políticas excepcionais que
dirigiram com maior ou menor clareza os acontecimentos. A Igreja
Protestante enfatiza seu papel na
Alemanha, assim como a Igreja Católica realça o seu na Polônia. Há
mesmo quem ache que a motivação principal foi o desejo de consumo dos habitantes do socialismo
real. E por aí vai.
São ainda incipientes as tentativas de colocar toda a série inusitada de sobressaltos cotidianos em
perspectiva histórica, de mostrar
que os acontecimentos de 1989 resultaram de movimentos e transformações que vinham de longe. E
que vinham de baixo, da base da sociedade, que não eram simplesmente dirigidos e guiados de cima.
Mas, até onde posso ver, essas tentativas ainda não convencem.
Pode ser que, no caso alemão, essa limitação esteja ligada ao próprio processo de unificação das
duas Alemanhas. Em lugar da convocação de uma Assembleia Constituinte, por exemplo, ocorreu uma
"reunificação" a toque de caixa, dirigida de cima e apresentada como
fato consumado. Essa forma impositiva e sumária limitou a organização e a expressão pública de vozes
que, vindas de baixo, teriam talvez
dado uma direção e um sentido diferentes ao processo.
Mas é possível que a dificuldade
seja ainda mais profunda. Depois
que ficções coletivas reais como
"povo", "nação" e "classe" perderam sua força e seu sentido, pode
ser que a dificuldade de enunciar o
sujeito da queda do muro revele a
dificuldade de saber afinal quem
hoje faz a história.
nobre.a2@uol.com.br
MARCOS NOBRE escreve às terças-feiras nesta
coluna.
Texto Anterior: Rio de Janeiro - Carlos Heitor Cony: O pagador do sucesso Próximo Texto: Frases
Índice
|