São Paulo, sexta-feira, 10 de dezembro de 2004

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JOSÉ SARNEY

Casa-da-mãe-joana

O sistema partidário brasileiro só não está no fim porque nunca existiu. O Brasil jamais conviveu com a presença de partidos fortes, nacionais, com espaços ideológicos próprios e quadros criados através da militância. A hierarquia na política não é vertical, é horizontal. Vão tomando a frente aqueles que, pela capacidade de liderança, se vão impondo e, através do respeito e da capacidade, podem tomar decisões e ser obedecidos e seguidos.
A definição clássica de partido político é que ele constitui um grupo de pressão dentro da sociedade, com uma diferença radical, que é a de pretender exercer o poder, enquanto os outros querem influenciar o poder. Poder é sinônimo de governo, que, nas democracias modernas, não se forma senão numa política de composições para tentar ser a média da vontade da sociedade. Isso assegura a governabilidade. Quando ela não ocorre, nasce a instabilidade, e nada mais do que ela é responsável pelo excesso de crises, como dizem os franceses.
No Império, os partidos tinham rótulos -liberal e conservador-, mas não tinham organização nem coesão. Eram facções estaduais que se uniam, em nível nacional, como governo e oposição. O imperador, com as armas do poder moderador, intervinha para evitar o cansaço dos gabinetes ou simplesmente para provocar a alternância no poder. Ao contrário de outros países da América Latina, cujos partidos são, hoje, centenários, nós vivíamos politicamente com o modelo "sem partido". Buscavam-se explicações. Uma delas era que nosso sistema era monárquico e parlamentar, enquanto nos Estados de língua espanhola eram republicanos e presidencialistas, que desbordavam em explícitas ditaduras. Na República, Campos Sales, para salvá-la, era totalmente contrário aos partidos. Achava-os nocivos ao bem público. Criou para substituí-los a política de governadores, na sustentação das oligarquias estaduais. O Partido Republicano começou a ter dissidências, que se manifestavam em outras siglas, como a formada por Glicério para sustentar Floriano. Mas sempre partidos estaduais. O Brasil só viria a ter a obrigatoriedade de partido nacional em 1945, com a Lei Agamenon Magalhães.
Campos Sales tinha a mesma visão de Washington, que dizia serem os partidos políticos uma "ardilosa e ativa minoria da sociedade", "maléficos" ao país.
Aqui convivemos com 36 partidos e com nenhum. O próprio PT sofre da federação de tendências, cujo equilíbrio e unidade devem-se à liderança carismática e dominante de Lula.
Quanto aos outros, a instabilidade e a desintegração são o exercício do cotidiano, para usar um lugar-comum. O PSDB é basicamente um partido paulista, uma dissidência do PMDB de São Paulo. O PMDB era uma confederação de partidos. Foram saindo dele os quadros que formaram os outros partidos. O PMDB ficou debilitado, sem carne, quase sem osso e sem a presença de um nome que imponha isenção e grandeza na presidência -no fundo, autoridade.
A culpa de tudo isso não é, contudo, do sistema em si. É do artificialismo, da vontade de contrariar, na política, aquilo que seria, na física, a lei da gravidade. O voto proporcional, uninominal, que só é praticado no Brasil, em todo o mundo, é desagregador e estimula a luta interna e um processo em cadeia de divisões e divisões.
Assim, os partidos são formados sem pão (programas) e com total ausência de razão. Um pouco casa-da-mãe-joana.


José Sarney escreve às sextas-feiras nesta coluna.


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