São Paulo, quinta-feira, 11 de janeiro de 2001

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Transparência e controle da coisa pública

BENEDITO DOMINGOS MARIANO

No dia 29 de dezembro último foi publicada minha demissão, a meu pedido, da Ouvidoria da Polícia do Estado de São Paulo. Foi uma antecipação do fim do meu segundo e último mandato. Foram cinco anos e 29 dias em que estive na condição de ombudsman do aparato repressivo do Estado.
Primeira experiência no Brasil de fiscalização autônoma e independente da polícia no Poder Executivo, a criação do órgão teve no meu entendimento duas motivações. A primeira foi proveniente da sociedade civil, que, por décadas, propunha a ampliação de mecanismos de fiscalização. A segunda foi decorrente da vontade política do governador Mário Covas. Talvez, se o governador de São Paulo fosse outro, a Ouvidoria da Polícia não tivesse sido criada.
Em que pesem as dificuldades do governo de São Paulo em estabelecer uma nova política de Segurança Pública após seis anos de mandato, é inegável que Mário Covas deu a principal contribuição ao país no que tange à transparência e ao controle da atividade policial.
Foram mais de 35 mil pessoas atendidas, cerca de 20 mil procedimentos instaurados e pelo menos 3.000 policiais punidos. A partir da demanda que veio da população e da própria polícia (cerca de 25% das denúncias foram encaminhadas por policiais, principalmente sobre abuso de autoridade cometido por superiores hierárquicos), foi possível ao órgão encaminhar ao governo de São Paulo 50 recomendações estruturais para o aperfeiçoamento da polícia.
Da Ouvidoria da Polícia de São Paulo nasceu, por decreto do presidente da República, o Fórum Nacional de Ouvidores de Polícia, que hoje congrega dez Estados. É uma pena que o governo federal tenha hesitado em criar a Ouvidoria da Polícia Federal, apesar de o Fórum Nacional de Ouvidores de Polícia ser órgão consultivo do Ministério da Justiça, vinculado à Secretaria de Estado dos Direitos Humanos.

A Ouvidoria da Polícia contribuiu para fortalecer a convicção de que não há democracia sem controle do que é comum

Talvez a principal frustração dos primeiros cincos anos da Ouvidoria da Polícia tenha sido verificarmos que as mudanças estruturais do setor de Segurança Pública não evoluíram com a mesma velocidade que a transparência policial. E só transparência não basta. É necessário mudar a polícia. Nós ainda temos órgãos corregedores sem autonomia e com estruturas frágeis. Temos regulamentos disciplinares que se preocupam mais com o comportamento do policial dentro do quartel do que na rua.
Temos leis orgânicas das polícias civis que não reforçam a importância da hierarquia policial, um dos pressupostos das organizações policiais sólidas, democráticas e de caráter civil. Ainda temos inquérito policial que, além de ser burocrático e improdutivo, atribui à polícia poder sem controle, sem respeito ao princípio do contraditório, trazendo o indiciamento, muitas vezes, danos irreparáveis aos cidadãos. Temos grande diferença entre o maior e o menor salário, o que leva a maioria dos policiais da base da polícia (principalmente PMs) a fazer o "bico da morte" para complemento salarial. Dos PMs que morrem em São Paulo, 80% morrem em folga.
Ainda temos um número absurdo do uso da força letal por policiais, que coloca o Brasil entre os países que têm a polícia que mais mata. Há tortura e corrupção no cotidiano da polícia. Há um modelo de polícia materializado na dualidade da atividade policial que não se alterou com a transição democrática.
Por outro lado, talvez a maior conquista da Ouvidoria da Polícia resida no fato de ela ter exercido o controle da coisa pública no aparato repressivo do Estado, marcado por instituições historicamente fechadas, ao mesmo tempo em que foi canal privilegiado do cidadão.
Em cinco anos de funcionamento, a Ouvidoria da Polícia contribuiu para quebrar preconceitos e fortalecer a convicção de que não há democracia sem controle do que é comum. Talvez isso seja suficiente para que as experiências de ouvidorias autônomas e independentes sejam ampliadas em todos os setores do Estado.
Merece registro especial a participação da imprensa na consolidação da Ouvidoria da Polícia do Estado. Muito da visibilidade e credibilidade do órgão se deve aos meios de comunicação de massa. Seja pela divulgação dos relatórios de prestação de contas, seja no destaque de algum caso exemplar, a imprensa contribuiu para difundir e facilitar o acesso da população à ouvidoria, demonstrando que é um instrumento vital à democracia e ao fortalecimento de órgãos de controle da coisa pública.
Cabe agora ao Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, órgão responsável pelo envio de lista tríplice ao governador para nomeação do ouvidor da polícia, dar continuidade a essa experiência pública pioneira no Brasil. Que as ouvidorias de polícia tenham vida longa no século 21.


Benedito Domingos Mariano, 41, sociólogo, é mestre em ciências sociais pela PUC-SP. Foi ouvidor da Polícia do Estado de São Paulo na gestão Mário Covas. É diretor do Centro Santo Dias de Direitos Humanos da Arquidiocese de São Paulo e fundador do Movimento Nacional de Direitos Humanos.




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