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São Paulo, terça-feira, 11 de fevereiro de 2003

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ROBERTO MANGABEIRA UNGER

Como sair dessa?

O debate mundial a respeito das alternativas, ou da falta delas, chegou a situação paradoxal. Nunca se difundiu tanto a convicção de que não basta o projeto dominante -de responsabilidade fiscal, de políticas sociais compensatórias e de desenvolvimento de instituições que tranquilizem os "investidores". Não basta para desenvolver as sociedades, muito menos para democratizá-las. O êxito da China e até da Índia em trilhar caminhos ricos em heresias institucionais, ainda quando maculados pelo despotismo ou pela corrupção, e o malogro persistente das economias que se submeteram ao ideário dominante abalaram a autoridade e a autoconfiança dos guardiães de uma ortodoxia malograda.
Entretanto, sucessivos governos eleitos em nome de uma agenda de desenvolvimento democratizante se vêm rendendo, antes mesmo que a rendição lhes seja exigida. Essa longa sequência de abdicações preventivas não tem gerado retomada de crescimento nem democratização de oportunidades. Os acontecimentos no Brasil são apenas o último episódio de uma história que se vai tornando cada vez mais desconcertante. Tentemos compreender esse colapso da vontade transformadora, ocorrido numa hora em que a resistência ao experimentalismo democrático se enfraqueceu.
Dois fatores são decisivos: um tem a ver com os meios de pensamento; o outro, com os instrumentos de ação.
Os que propomos, em diferentes regiões do mundo, um rumo produtivista, voltado para inovações institucionais que capacitem os indivíduos, democratizem o mercado e aprofundem a democracia, não conseguimos ainda traduzir nossas propostas em práticas, de análise e de organização, que possam ser facilmente entendidas, reproduzidas e desdobradas. A falta de clareza a respeito das alternativas confunde e suprime o impulso transformador.
Ao vazio das idéias se sobrepõe uma força que estreita a margem de manobra dos governos. O padrão-ouro, que alcançou o apogeu nas décadas anteriores à Primeira Guerra Mundial, restringia drasticamente a autonomia dos governos nacionais. Após o intervalo libertador do keynesianismo, ressurgiram equivalentes funcionais ao lastro da moeda em ouro. Nas economias centrais, essa equivalência reapareceu na forma relativamente branda do abandono de políticas anticíclicas. Em algumas economias periféricas, como nas da América Latina, tomou a forma de síndrome específica: baixas reservas, pouca poupança, liberdade cada vez mais irrestrita de movimento dos capitais, independência das autoridades monetárias e primazia atribuída à confiança financeira. A vulnerabilidade dos governos aos ditames dos mercados financeiros é tratada como solução, não como problema, porque impõe a disciplina do dinheiro às aventuras da política; qualquer deslize pode resultar em crise no balanço de pagamentos. Os países em desenvolvimento que estão avançando, porém, são aqueles que rejeitaram esse sucedâneo ao padrão-ouro. Acumulando reservas, mobilizando poupança de longo prazo para investimento de longo prazo e subordinando as prerrogativas do capital financeiro às necessidades da produção, afrouxaram a corda em volta do pescoço dos governos.
Aí está, para nós, como para qualquer país, a maneira de iniciar a fuga do cárcere -de estagnação, de exclusão e de desigualdade- em que nos encontramos: uma idéia clara de como usar o poder público para ampliar o acesso a oportunidades de aprender, trabalhar e produzir, associada a iniciativas que resguardem as condições de originalidade nacional. Não é a porta do paraíso; é apenas o começo da libertação.


Roberto Mangabeira Unger escreve às terças-feiras nessa coluna.
www.law.harvard.edu/unger


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