São Paulo, Quinta-feira, 11 de Março de 1999
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O presidente fora da lei


FHC entalou o país numa enrascada histórica, com a solidariedade e a manipulação de grande parte da mídia


TARSO GENRO

O art. 170 da Constituição, parágrafo 1º, regulando os princípios gerais da atividade econômica, assenta que a ordem econômica do país obrigatoriamente deverá observar, entre outros, o princípio da soberania nacional, cujo respeito é condição a ser preenchida para legitimar os contratos do Estado na promoção dessa ordem. A preservação da soberania é, pois, requisito irrenunciável, que vincula o agente político na sua relação com terceiros.
Na carta-compromisso firmada perante o FMI (item 18), o governo FHC não só se comprometeu a adotar um novo sistema tributário, exigido pelo Fundo, como prometeu (item 23) obedecer à orientação de prosseguir na venda do patrimônio público, tudo para pagar juros e serviços da dívida.
Na mesma carta (item 29), o governo declara que obedecerá à orientação de reduzir para 7%, no máximo, a participação dos bancos públicos nos depósitos do sistema bancário brasileiro. O objetivo é óbvio: abrir espaço para o controle do setor pelos bancos estrangeiros. Tanto no primeiro acordo como no recentemente anunciado, que reitera os termos anteriores, o governo FHC atenta frontalmente contra a soberania nacional como princípio geral orientador da atividade econômica.
No art. 85 da Carta, está previsto como crime de responsabilidade do presidente o atentado contra o livre exercício do Poder Legislativo. Tal atentado ocorreu flagrantemente na cooptação de parlamentares, por meio de vantagens políticas, e até na compra de votos para a reeleição (segundo informações levantadas pela Folha), bem como no esforço do presidente para impedir CPI destinada a investigar a matéria. Foi a mais grave denúncia que emergiu na cena pública brasileira (mais que todas as falcatruas de Collor), pois era uma ação delituosa que visava reformar a lei fundamental do país: a Constituição.
O art. 84 da Carta, inciso 26, permite que o presidente, nos termos do art. 62, em caso de "urgência e relevância", edite medidas provisórias "com força de lei". Seria fastidioso enumerar as vezes em que o presidente usou MPs sem nenhum sentido "urgente e relevante", contribuindo para "reformar" de fato e autoritariamente o conceito dessa prerrogativa excepcional, assim reconhecida nas Constituições democráticas, que a adotam para impedir o arbítrio, não para viabilizá-lo.
O art. 85 da Carta aponta como crime de responsabilidade do presidente o fato de ele atentar contra a segurança interna do país. FHC faz isso sistematicamente. Além de, no primeiro acordo, o governo comprometer-se com a entrega do controle das nossas reservas ao banco central americano se elas chegassem ao limite de US$ 20 bilhões, a carta permite -o que é confirmado pelo segundo acordo- que o FMI oriente de forma absoluta nossa ordem econômico-financeira, como foi feito por meio de compromissos como os assumidos nos itens 24, 25, 30 e 31 (entre outros). Esses itens desenhavam antecipadamente os atos de governo requeridos pelo FMI, representante da agiotagem globalizada. No novo acordo, tudo é reiterado e aprofundado.
Finalmente, se a FHC fosse aplicado, analogamente, o artigo 171 do Código Penal para julgar sua campanha eleitoral, ele poderia sofrer pena de reclusão de um a cinco anos. O artigo está assim redigido: "Obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, aduzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil ou qualquer outro meio fraudulento". A redação da súmula 73 do Supremo Tribunal de Justiça, que sintetiza um conjunto de decisões sobre "falsificação de dinheiro", permite dizer que ela também é uma premonição e uma metáfora do que aconteceria com o real: "A utilização de papel-moeda grosseiramente falsificado configura, em tese, o crime de estelionato, da competência da Justiça Federal". O real era falso, e FHC cometeu estelionato eleitoral.
O governo FHC entalou o país numa enrascada histórica. Conta com a solidariedade e a manipulação de grande parte da mídia, que não só procura desmoralizar quem reage com indignação e energia, como Itamar Franco, apresentando-o como se ele fosse um aventureiro irresponsável, como não informa o povo sobre a gravidade da situação de dependência e dilapidação da nossa base produtiva histórica, construída com sacrifício de milhões. Num país em que as instituições do Parlamento e do Judiciário cumprissem suas funções constitucionais, o presidente já seria considerado fora da lei, em posição de afronta à Constituição.


Tarso Genro, 52, advogado, é membro do Diretório Nacional do PT. Foi prefeito de Porto Alegre (RS) de 1993 a 96 e deputado federal de 1989 a 90. É autor de "Na Contramão da Pré-História" e de "Utopia Possível".



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