São Paulo, sexta-feira, 11 de março de 2005

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Senhora do nosso destino

RICARDO IZAR

Homem com homem. Mulher com mulher. Menina negra e favelada seduzida por homens brancos -um deles menino, filho do prefeito-, gerando filhos em série. Um desfile ininterrupto, em qualquer capítulo, de casais na cama, não interessa a espécie de casal: um homem com duas mulheres; uma mulher com dois homens, uma mulher com outra mulher... Tudo sempre na cama, os dorsos nus, cenas picantes -por muito pouco não há nus frontais e sexo explícito. Nas residências familiares sempre há um quarto onde a garota recebe (na cama, claro), para passar a noite, com o beneplácito da mãe, o rapaz que às vezes acabou de conhecer na rua.


O senhor Aguinaldo Silva não tem filhos, netos, pais, irmãos, amigos? Por que enxovalhar a sociedade brasileira?


Mas vai acabar. Hoje finalmente se encerra a exibição da novela "Senhora do Destino", levada ao ar por quase nove meses, todos os dias, exceto aos domingos, num horário nobre, quando nossos filhos e netos estão atentos a tudo.
Os políticos são todos corruptos e malévolos, não há de esperar deles nenhuma fímbria de decência. Uma união estável de homossexuais -lésbicas, no caso- adota um bebê (negro, é claro; o racismo é subliminar, não vá o "casal" querer adotar um bebê loirinho...). Violência, tiros, assassinatos, preconceito racial, traição, maldades, mentiras.
Mas tudo isso são apenas detalhes. Essa realidade virtual decididamente não é o nosso Brasil. Ela surgiu da vasta e devassa imaginação do noveleiro Aguinaldo Silva e chegou a atingir a audiência de 80% -um sucesso! Isso significa que algo como 45 milhões de brasileiros de todas as idades estiveram ou estão sintonizados no folhetim.
Ah, a questão da formação de nossos jovens, da apologia do racismo, da concupiscência, da promiscuidade, da devassidão; a criação de falsos estereótipos, a questão moral e o respeito à verdadeira índole da imensa maioria do nosso povo -tudo isso, bem, é uma questão menor.
Ah, a natureza humana... As paixões humanas, inclusive o amor, o sexo, a ambição, o poder, isso tudo vem sendo psicanalisado desde que o homem se tornou capaz de refletir e a linguagem foi inventada. Hoje, com a integração do conhecimento, nas suas diferentes vertentes, é praticamente impossível afirmar qualquer coisa quanto ao homem: o que é certo ou errado, natural ou antinatural, bom ou mau. Mas um mínimo de convicções e de hábitos culturais, produto de milênios de civilização, deve -ou deveria- remanescer cristalizado na sociedade, emoldurando o que chamamos de moralidade.
Na dramaturgia e na literatura, tais paixões foram exploradas com talento e grandeza insuperáveis por Shakespeare, ainda no século 16. Mas, desde a Antigüidade, a natureza humana tem sido honrada e enlevada pela pena de homens como Homero, Dante, Dostoiévski, Victor Hugo e mesmo Machado de Assis e Guimarães Rosa, aqui no Brasil. Já Aguinaldo Silva, o noveleiro, não demonstra esse compromisso com a grandeza e a potencialidade do espírito humano. A sua "arte" é exercida com uma caneta na mão e os olhos grudados no "audienciômetro", conforme ele próprio confessa: audiência baixa, apimenta-se ainda mais o folhetim.
Civilização significa organização do controle social dos instintos naturais do homem. Sem a civilização não existe o respeito ao direito de propriedade, à mulher do vizinho, à vida do próximo. Toma-se o que se deseja tomar. Mata-se o rival, estupra-se a fêmea, subtrai-se sumariamente de alguém qualquer objeto do desejo. É a barbárie; o homem em seu estado primitivo. Mas já transpusemos esse estado ancestral e, por isso mesmo, uma certa inércia é inerente às diferentes civilizações. Do contrário, estaríamos induzindo rupturas sociais indesejáveis, abruptas e violentas, como a história não se cansa de nos ensinar.
Quando o noveleiro Aguinaldo Silva difunde como normais e corriqueiros padrões chulos de comportamento humano que absolutamente não representam, em sua estonteante maioria, a cultura do nosso povo, está incutindo subliminarmente em dezenas de milhões de espíritos entorpecidos e não preparados para a crítica valores que catalisam a ruptura de nossa sociedade. A serviço de quem um noveleiro pode agir assim?
O senhor Aguinaldo Silva não tem filhos, netos, pais, irmãos, família, sobrinhos, amigos? Que descompromisso é esse? Por que enxovalhar a sociedade brasileira, nivelando por baixo a nossa índole, e por que propagandear explicitamente uma apologia de valores questionáveis, que ainda estão por ser definidos em nossa cultura? Essa fantasia inelutavelmente influenciará milhões de crianças, adolescentes e jovens ainda imaturos e carentes de senso crítico.
Será que o noveleiro faz isso por dinheiro? Mas isso é muito pouco! Por que a emissora que veicula a novela "Senhora do Destino" permite essa ameaça à moralidade do nosso povo?
Há algo de profundamente errado na televisão brasileira.

Ricardo Izar, 68, bacharel em direito, é deputado federal pelo PTB-SP e vice-líder do partido na Câmara. Foi secretário municipal das Administrações Regionais de São Paulo (gestão Maluf).
@ - dep.ricardoizar@camara.gov.br



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