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São Paulo, domingo, 11 de maio de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

O segundo Consenso de Washington

LUIZ CARLOS BRESSER PEREIRA


Em sua busca por credibilidade ou confiança o país renuncia a pensar com a própria cabeça

Estes primeiros meses indicam que não aprendemos com nossos erros e que o Brasil está voltando à equação macroeconômica que lhe foi mortal nos anos 90: alta taxa de juros e baixa taxa de câmbio. Existem duas explicações opostas para o desempenho econômico frustrante da América Latina nessa década. De acordo com a esquerda tradicional, a região permaneceu novamente quase estagnada porque adotou as reformas voltadas para o mercado previstas no Consenso de Washington. Em contrapartida, a direita neoliberal e Washington afirmam que "o principal erro do consenso foi não haver pressionado suficientemente a América Latina para que fosse mais adiante nas reformas". Como é próprio de toda ideologia dominante, essa explicação parece mais razoável. E, no entanto, é tão equivocada quanto a primeira.
Não foi porque fizeram as reformas previstas no Consenso de Washington ou porque deixaram de as fazer que o Brasil, a América Latina e todos os países altamente endividados não cresceram nos anos 90, mas porque adotaram propostas posteriores, constitutivas de um segundo consenso, as quais, embora igualmente liberais, eram opostas às do primeiro consenso.
O primeiro Consenso de Washington foi um fenômeno dos anos 80. Diante da crise da dívida externa, Washington, ou seja, o governo americano, o FMI, o Banco Mundial e os "think tanks" daquela cidade conceberam uma estratégia de ajuste fiscal, de ajuste das contas externas e de reformas orientada para o mercado. Essa estratégia podia ser resumida em dez pontos, entre os quais estavam o ajuste fiscal, o ajuste das contas externas, a privatização e as reformas comercial, tributária, previdenciária e trabalhista.
Fiz a crítica sistemática desse consenso ainda em 1990. O que eu criticava, porém, não eram os dez pontos de reforma, mas o que estava implícito no consenso: o neoliberalismo, a proposta de reduzir o Estado ao mínimo, o desejo de o tornar mero garantidor da propriedade e dos contratos, a crença em que o mercado poderia automaticamente regular toda a economia desde que o ajuste fiscal fosse garantido e, assim, a inflação fosse evitada. Tudo isso era mera ideologia. Ainda que algumas reformas tenham sido levadas longe demais, ou possam ter sido mal feitas, não foram elas, muito menos o ajuste fiscal e o ajuste das contas externas, que provocaram a semi-estagnação dos anos 90. Como também não foi sua falta. Afinal, poucos países receberam mais elogios de Washington por suas reformas do que a Argentina.
Qual foi então o erro? Foi a estratégia definida por Washington no início dos anos 90 para legitimar o grande fluxo de capitais que então recomeçava: o que tenho chamado de segundo Consenso de Washington. Quatro pontos o caracterizam: 1) o uso de âncora cambial combinada com altas taxas de juros, para controlar a inflação e atrair capitais; 2) a exigência de abertura da conta capital (reforma não prevista no primeiro consenso); 3) a afirmação de que os países altamente endividados não tinham mais recursos para financiar seu próprio desenvolvimento e, portanto, só poderiam se desenvolver se contassem com poupança externa; 4) a sugestão de que, para obter essa poupança, os governos dos países deveriam ter "credibilidade", ou seja, aceitar as recomendações vindas de Washington.
Enquanto aqueles que recusaram esse conselho, como a China, a Índia e o Chile, continuaram a crescer solidamente, aqueles que o aceitaram foram levados a crises financeiras e à semi-estagnação. Primeiro, porque esses países não podiam ter uma conta de capitais completamente aberta e, com isso, perder todo o controle da taxa de câmbio. Segundo, porque não é verdade que os países latino-americanos não têm recursos para financiar seu desenvolvimento. Terceiro, porque, no sistema de contas nacionais, "poupança externa" é sinônimo de déficit em conta corrente e, portanto, de aumento de endividamento externo. Quarto, porque, além causar aumento da dívida, déficit em conta corrente significa moeda local relativamente valorizada, salários e consumo artificialmente altos, populismo cambial, resultando mais cedo ou mais tarde em crise de balanço de pagamentos. Quinto, porque, ainda que parte da poupança externa venha na forma de investimentos produtivos, o destino do aumento do endividamento externo feito com valorização cambial e taxa de juros alta só pode ser o aumento do consumo doméstico: a poupança externa é compensada pela despoupança interna.
O primeiro e o segundo consenso são opostos. O primeiro era duro e, assim, mal ou bem, promovia o necessário ajustamento do país. O segundo é frouxo: através do câmbio valorizado promove o populismo cambial com a chancela do FMI, anulando, inclusive, o necessário ajuste fiscal. A combinação perversa de crescimento por meio da poupança externa com a busca de "credibilidade" que caracteriza o segundo consenso resulta numa equação macroeconômica mortal: alta taxa de juros e taxa de câmbio baixa, a primeira inviabilizando o investimento, a segunda favorecendo o endividamento e o consumo. Em sua busca por credibilidade ou confiança o país renuncia a pensar com a própria cabeça.
Nesse quadro, a política adotada pelo novo governo brasileiro foi a do "choque de credibilidade". Em um primeiro momento, estava correto. Esse agrado aos credores, mais os grandes superávits comerciais resultantes da desvalorização de 2002, permitiu que o crédito externo voltasse. No momento em que os fluxos de capital voltaram, entretanto, o governo, em vez de preparar a mudança do "regime de política econômica", visando inverter a equação macroeconômica perversa, manteve a política de alta taxa de juros, ao mesmo tempo em que não intervinha na de câmbio.
Com a volta dos fluxos de capital, atraídos pela alta taxa de juros, a taxa de câmbio voltou a cair. Queda livre, hoje já muito abaixo do nível de equilíbrio -de no mínimo R$ 3,20 por dólar-, que poderá garantir os altos superávits comerciais de que o país necessita. A inflação cai, os salários sobem. Euforia geral. Voltamos aos braços do segundo Consenso de Washington e do populismo cambial. Ou talvez ainda não. No dia 1º de maio Lula declarou que "o dólar não pode cair demais". Ele já se tem indignado com a taxa de juros. Resta, portanto, uma esperança.


Luiz Carlos Bresser Pereira, 68, é professor da FGV-SP e editor da "Revista de Economia Política". Foi ministro da Ciência e Tecnologia e da Administração Federal e Reforma do Estado (governo FHC), além de ministro da Fazenda (governo Sarney).


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