São Paulo, terça-feira, 11 de maio de 2004

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ROBERTO MANGABEIRA UNGER

Resistência

Há razão para ter esperança. Aproxima-se o Brasil de um dos momentos mais fecundos de sua história. Ninguém que acompanhe a vida nacional ouvindo o que dizem quase todos os políticos e lendo o que escrevem quase todos os jornalistas teria como saber disso. A sucessão estaria encomendada. Transcorreria como embate entre duas facções -uma agrupada em torno do presidente atual; outra, em volta do anterior- que disputariam o poder em nome do mesmo projeto. Na ausência de forças e de pessoas capazes de liderar alternativa políticamente viável, tudo ficaria como briga em família.
Esse entendimento demonstra incompreensão das realidades do Brasil e das possibilidades da política. Das realidades do Brasil, porque o país de hoje está mais, não menos, determinado do que o país de 2002 a mudar de rumo. Parte grande e crescente do eleitorado só votará num daqueles dois candidatos se não tiver outra opção. Das possibilidades da política, porque a nação só deixará de ter essa opção se nos conformarmos os inconformados.
Os eleitores brasileiros têm demonstrado, repetidamente, audácia e abertura de espírito na escolha do presidente. Do contrário, não teriam eleito o ex-operário que logo em seguida viria a revelar sua fraqueza e sua infidelidade. Escolhem entre os poucos nomes que lhes são oferecidos por um sistema de política e de mídia corrompido por dinheiro e por cinismo. Os eleitores são capazes de milagres de percepção. Não podem, porém, optar por possibilidades que não lhes são apresentadas.
Daí o dever de todos que tiverem condição para fazê-lo de colaborar na construção de candidatura que transforme a sucessão. Candidatura que demonstre como fazer prevalecer os interesses do trabalho e da produção e como ancorar o crescimento econômico na democratização das oportunidades. Que faça do ensino público de qualidade sua obsessão. E que insista no compromisso de libertar a política da influência do dinheiro e de assegurar o espaço republicano indispensável ao enfrentamento de nossos problemas. Que, renegando desvios impostos por colonização mental, prossiga a obra interrompida do trabalhismo brasileiro. Que comece por atuar na classe média e nas organizações sociais para chegar, depois, à comunicação popular e às alianças partidárias. Que não se intimide com a dificuldade inicial de se fazer conhecer, na consciência de que pesquisas eleitorais distantes de eleição traduzem apenas reconhecimento de nome. E que confie na força da vontade nacional de abrir caminho. Candidatura que, intocada por salvacionismo personalista, dê voz à energia subterrânea que continua a sacudir um Brasil hoje entristecido.
Entre aqueles a que as injustiças de nossa sociedade dão o privilégio da ação pública, um não atua porque quer acumular riqueza; outro, porque prefere pensar e escrever. Mais fácil -e quase sempre infeliz- encontrar no pequeno rol dos políticos nacionalmente conhecidos alguém para executar a obra transformadora. Não se credencia tarefa sem sacrifício. Sacrifício de nosso único recurso importante, o tempo de nossas vidas. Sacrifício de expor-nos a incômodos e vexames. Sacrifício, disciplinado por inteligência e motivado por amor, que pagará nossas faltas para com o Brasil.


Roberto Mangabeira Unger escreve às terças-feiras nesta coluna.
www.law.harvard.edu/unger


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