São Paulo, terça-feira, 11 de maio de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Uma grande mudança que nada altera

SERGIO SEIBEL

 "Si vogliamo che tutto rimanga com" è, bisogna che tutto cambi (...) E dopo sarà diverso, ma peggiore." Tomasi di Lampedusa; "Il Gattopardo"

A Câmara dos Deputados deu um virtuoso passo no sentido de promulgar uma nova legislação sobre drogas no Brasil. Já não era sem tempo. A legislação que rege a matéria sobre substâncias psicoativas em nosso país é de 1976 -outros tempos (e que tempos), outros costumes.
Em quase 28 anos, muitos acontecimentos mudaram a face do país. Naquela época, anestesiada sob uma férrea ditadura militar, a opinião pública foi se fazendo presente, a sociedade foi se organizando e, hoje, já há condições de termos leis adequadas a esse movimento de pensamento crítico, sem tutelas de quaisquer espécie.
Nesses últimos anos, diversas tentativas foram feitas de um novo tratamento à legislação sobre drogas em nosso país. Em que pese o reconhecimento do esforço de parlamentares dos mais diferentes matizes, não se conseguiu ainda uma cláusula que diferencie usuário de traficante de drogas, como no projeto de lei 115/02, votado em 10 de fevereiro último, pela Comissão de Constituição e Justiça e de Redação da Câmara dos Deputados, e aprovado no plenário, retornando ao Senado.
Poucos foram os debates ocorridos em plenário e, apesar dos tempos democráticos que ora vivemos, um ranço da ditadura (entre outros) sobrou. Nossos parlamentares, legitimamente eleitos pelo povo, esqueceram-se de debater a matéria com as sociedades civil e científica, diretamente interessadas no tema. A mídia calou-se. Como diria nosso saudoso Mané Garrincha, esqueceram-se de combinar o jogo com os inimigos.


A questão do consumo [de drogas] deve ser encarada como exclusiva do âmbito da saúde pública, nunca da esfera criminal


O deputado Paulo Pimenta (PT-RS), relator do projeto de lei aprovado, apesar do discurso modernizador e liberalizante, manteve certas incongruências, "filigranas" que, no entanto, revelam-se de fundamental importância para quem continuará sofrendo na pele os rigores da lei, quando sancionada e regulamentada. É dos usuários de drogas que estamos falando.
Em seu relatório, o deputado escreve que "a grande virtude da proposta é a eliminação da possibilidade de prisão para o usuário e dependente". Logo a seguir, "ressalvamos que não estamos, de forma nenhuma, descriminalizando a conduta do usuário -o Brasil é signatário de convenções internacionais que proíbem a eliminação desse delito".
Mas parece desconhecer o ilustre deputado que muitos países se afastaram da linha repressiva norte-americana da "guerra às drogas", até há bem pouco hegemônica e imposta pelos EUA às convenções da ONU. O que nos descreve ainda o deputado relator é que "fazemos apenas modificar os tipos de penas a serem aplicadas ao usuário, excluindo a privação da liberdade como pena principal". "Para que o condenado não possa se subtrair ao cumprimento das penas restritivas de direito previstas no substitutivo que ora apresentamos, estabelecemos a possibilidade de condenação do usuário nas penas do artigo 330, do Código Penal em vigor."
Quer dizer, o usuário continua penalizado. Como nos descreve em seu alentado relatório o deputado Pimenta, "caso não cumpra as penas restritivas brandas, novas medidas penais serão definidas". Não era necessário tanto esforço para um simples jogo de palavras.
Devido às evidências da falência do modelo religioso-moralista e proibicionista até agora em vigor, impondo a abstinência total do uso de drogas, os países da União Européia vêm adotando posturas descriminalizantes no que diz respeito ao usuário de drogas, optando por estratégias de minimização dos danos relacionados ao uso das substâncias psicoativas, dentro de um princípio de racionalidade científica e de resgate da cidadania, que vem mostrando resultados bem mais eficientes. O objetivo não é a marginalização do usuário, mas sim a sua inclusão na sociedade.
Não seria hora de repensar o modelo que temos e delinear o que de fato queremos? A questão do consumo deve ser encarada como exclusiva do âmbito da saúde pública, nunca da esfera criminal.
É preciso contrariar as judiciosas palavras de Lampedusa na epígrafe deste texto, em "O Leopardo"; é verdadeiramente necessário que as coisas mudem para que não fiquem a mesma coisa. E melhorem. Seriedade, senhores.

Sergio Seibel, 59, psiquiatra, doutor em saúde mental pela Unicamp, pesquisador associado à Faculdade de Medicina da USP, é presidente do Comitê Multidisciplinar de Estudos em Dependência do Álcool e outras Drogas, da Associação Paulista de Medicina.


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